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(Aviso: Os textos em amarelo pertencem à categoria
Eróticos.)




sexta-feira, 31 de julho de 2009

O Último Gole - por Luiz de Almeida Neto

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O que vale mais que o tormento da eternidade? Nada. Tem umas coisas que o ser humano desafia só por causa de sua natureza. É evidente que sempre reclama à nossa consciência a possibilidade de não haver punição eterna. Evidentemente há a hipótese de inexistência de céu e inferno. Mas… E se existisse… Haveria algo que valeria sofrimento tão pujante? Nada. Nem mesmo toda a razão da sua própria existência? Talvez nem mesmo isso. O sofrimento é capaz de destruir tudo, e até sua existência não faria sentido sem uma perspectiva de futuro, ainda que tal perspectiva fosse a própria morte.

Gemiti, homem já velho e criado pelos bares, regado a belas doses e desabrochado nos mais belos colos da Rua do Alto Mandamento, acordou certa vez pra sempre, ou dormiu certa vez pra sempre, depende muito do lado do qual você observa. Olhando para o local onde falecera, percebeu que seu copo jazia ali, inerte, à espera de sua boca sedenta, mas não conseguia tocá-lo. Tentou muitas vezes, e, malogrado o êxito de sua campanha rumo ao gole de rum, deu-se por satisfeito de ficar ali, embasbacado, olhando para a garrafa abandonada.
Aí chegou “a inesperada”, com foice, capuz e tudo mais quanto tinha direito. Toda de preto pra não deixar dúvida. Até o vento traiçoeiro da meia-noite bateu, e percebia-se, inclusive, certos uivos pelo ambiente. Chegou perto de Gemiti, como quem não queria nada, sem que ele pudesse perceber, mas, naturalmente, era como se sempre estivesse ali, como se ele sentisse sua presença e lhe pudesse farejar. Saiu em disparada pela Rua do Alto Mandamento e só quando já ia à altura da Rua do Almirante se deu conta que não havia ninguém. Tudo era sereno.
A neblina imperava com seu ar pesaroso como se já fosse o velório. Gemiti, incrédulo, relutava, sem acreditar que a divina hora chegara, mas teve coragem: decidiu esperar ali, pra ver o que sucederia, e… principalmente… o que lhe esperava. Pensou que talvez pudesse invocar alguém, algo, qualquer coisa. Não tinha nada. Ficou cabisbaixo, como que a matutar sobre qual a atitude mais honrada, o que melhor fazer diante daquilo tudo.
Nesse ínterim, subia a Velha Dona Morte, com uma passada desleixada, com sua árdua e perene tarefa, com uma tranquilidade que não parecia verossímil aos olhos do iminente defunto, acostumada e relaxada na hora cabal pra cada um, costumeira sempre a ela. Chegou perto, e seu bafo era horrível, mas, mesmo assim, lendo um papel, teve de falar.

- Gemiti dos Santos?
- É… É… Eu - eu… Me-me-smo.
- Vamo. Tá na hora.
- Hora de quê?
- De subir, né, querido?
- Então é isso? Ao menos quer dizer porque vou subir?
- Não sei muito bem. Não sou eu que resolvo isso. Mas você desenrola quando chegar lá.
- Desenrola uma porra! Eu tô sabendo que não tem jeito. Daqui pra frente não tem mais chance. Já dancei.
- Mas não é assim. Com uma boa justificativa a gente sempre desenrola alguma coisa por ali.
- Desenrola nada! O que tá feito, tá feito.
- Que nada! Com uma boa justificativa a gente sempre pode mudar o peso dos atos.
- Ih! Sei não…. Olha lá, hein! Depois eu entro errado aí e não tem mais volta!
- Olha, eu tenho um cara que tá esperando no cruzamento da Frei Caneca com a Escrava Isaura. Morreu de facada. Imagina a situação! E tu só aqui enrolando. Tá ruim assim.
- Mas eu não tenho direito nem a um último desejo?
- Mas tenha pena do pobre coitado que tá lá estirado no chão. Já tá juntando mosca por causa de você aqui.
- Caramba! Tá tudo certo. Mas se eu pudesse, ao menos…
- Ao menos o quê?
- É que eu deixei um serviço incompleto aqui entre os homens.
- Conversa!
- É sério. Palavra.
- Que foi que ficou pela metade?
- Pela metade, não. Mas ainda falta só uns três dedinhos assim…
- Mas pelo amor de Deus! A essa hora, Gemiti?! Assim não tem quem aguente!
- Mas que “vexame” é esse também? É essa hora sim! Qual é a outra que eu tenho?
- Olha, o cara tá lá esperando, viu?! Isso é até pecado!
- Mas como é que já se viu! Ser autoritário desse jeito! E mexendo com coisa tão importante!
- Tá bom. Faço um acordo então. Você fica até beber tanto quanto conseguir. Desisto! Mas também… Quando não conseguir mais beber… Eu volto… E você desce direto!
- Direto? Sem nem um julgamento? Mas isso não é inconstitucional?
- Direto!
- Tá bom. Mas só quando eu não conseguir mais entornar nada. Tá certo assim?
- Tá feito. Tchau.

E foi assim que Gemiti, acordando com a face em cima de uma mesa de bar, teve a desfaçatez de olhar bem na minha cara e dizer: “De hoje em diante não bebo nunca mais! Nem mais um gole!”, e nunca mais voltou. Deixou inclusive a conta pendurada nas minhas costas.
Sei não. Acho que só tem duas coisas que fazem um homem enganar aquilo que não pode ser enganado: a covardia ou a preguiça. Um brinde aos preguiçosos pela sua inocência.



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3 comentários:

Luiz de Almeida Neto disse...

Kkkkkk. Colocaram ateh a fotozinha do post! Muito bacana! E parabéns mais uma vez por mais essa iniciativa, pessoal do Duelos! Essa do "Tema do Mês" foi legal!

Alba disse...

Luiz,
Ótima. Adorei. Abraços.

Ana disse...

Luiz:
Muito legal!
E que imagem linda!
Um abraço e parabéns!