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segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Perfeição - por Alba Vieira

A que nos remete a palavra? É algo de divino, transcendente, inalcançável, talvez. Buscamos atingi-la, ainda que em coisas especiais e pagamos alto preço quando nos distanciamos dela no que é corriqueiro. Se o olhar é estético, conseguimos imaginar o ser perfeito, a obra primorosa, o objeto talhado com perfeição ao concebê-los com a harmonia das formas. Mas, no plano moral, o que seria a perfeição? É inevitável cair no maniqueísmo de julgar bom ou ruim segundo nossos pontos-de-vista. Eu diria que perfeito é o que flui. Não precisamos gastar energia para realizá-lo. É como na natureza, em que os processos se sucedem numa conjunção harmonizada de etapas que culminam num evento singular e absoluto: como o desabrochar das pétalas de rosa com o momento certo de exalar o perfume e a cor exata; e a gota do orvalho que cai da folha e provoca ondas perfeitamente concêntricas na poça d’água de chuva. A palavra certa proferida no exato momento pelo homem sábio. A manobra correta executada pelo motorista ao se defender do incauto no trânsito caótico, evitando o acidente fatal. A decisão acertada do cirurgião num caso difícil que pode salvar uma vida. O gesto significativo do homem amoroso que alivia a dor de uma alma que sofre. O sorriso largo que muda a situação e alivia a tensão numa discussão acalorada. Afinal, o que é perfeito? É algo que devemos perseguir? Talvez não, porque isto também nos dá idéia de futuro. Pensando na palavra per-feito, que nos passa a noção de “durante o fazer”, a perfeição se refere ao momento presente, ao aqui e agora, ao caminho que se desenha durante o caminhar, ao deixar acontecer, ao fluir sem resistência, ao confiar, ao expressar o natural, ao simplesmente ser.
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Perfeição - por Adir Vieira

Olho essa boca e, a princípio, num lance imediato, percebo suas imperfeições atuais: lábios menos rígidos, ausência de alguns dentes, a própria cor mais desbotada… tudo denotando uma imperfeição, uma diferença, se comparada a essa mesma boca em tempos já idos… Mas eis que, de repente, como que ao ouvir meus pensamentos e a adivinhar o meu olhar, ela me beija… com ímpeto, com calor, com comando, com a mesma e perfeita docilidade com que um dia me arrebatou, fazendo-me percorrer caminhos ainda não descobertos do prazer divino e sensual. A temperatura é a mesma, o sabor, o mesmo, o requinte, o mesmo… Aí, então, eu me pergunto: onde fica e o que é a perfeição?
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Paz - por Adir Vieira

Certamente não foi a paz que eu pedi, certamente não foi a paz que eu sonhei para hoje. Planejei todos os detalhes para desfrutá-la sem máculas, daí não consigo entender o ocorrido. No meu projeto pensei artimanhas, pesei minhas manhas, curti os pré-caminhos, vasculhei os escaninhos da mente e sem querer ser persistente, avaliei sem medidas todas as entrelinhas. Imaginei eu, somente eu e nada mais, num ambiente tranqüilo, de inteira paz. Natureza ao redor, mas nem um bichinho sequer para fazer ruídos incompreensíveis. Isolei de mim tudo o que me lembrasse o corre-corre da rotina diária. Queria a paz do campo, a paz das flores, dos arbustos empertigados na sua imponência… queria prender-me aos patos nadando no córrego, quando do silêncio me cansasse; queria comer fruta direto do pé; queria, enfim, quase a irresponsabilidade ambulante sem tempo, sem vinculações… No entanto, em meio a esses pensamentos, descubro-me, de repente, dentro do carro, na estrada, a caminho da minha vida sem paz.
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A Paz - por Alba Vieira

Inquietação, rigidez do corpo, tremor leve, aperto no peito, respiração curta.
Encouraçada pelo medo avanço trôpega e hesitante pela vida.
Apesar das incontáveis experiências semelhantes já vividas,
ainda me deixo envolver pela ameaça do desconhecido
e insisto em negar a possibilidade da paz interior.
Preciso saltar no algodão doce e rosa que a confiança nos oferece sempre,
dançar rodopiando entrelaçada com minha alma,
iluminada pelo facho da luz benfazeja do luminoso;
não duvidar, não tentar controlar,
apenas entregar-me à certeza de que tudo é perfeito
e me deixar levar pelas mãos amorosas da vida.

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Sentir/Pensar - por Alba Vieira

Saí pelo mundo olhando com olhos que eram diferentes.
Diferentes porque viam com a abrangência das crianças.
Olhos que apenas sabem captar o que o mundo lhes oferece.
Crianças não pensam no porquê das flores serem como são,
Elas simplesmente aceitam aquilo que vêem.

Pensar é arranjar justificativas para si mesmo.
Ser não carece de explicações,
Ser é tão simples que não se consegue imaginar.

Falar - será assim tão importante?
Será essencial exprimir-se desta forma?
Busco a mudez, tão maravilhosa mudez, que me permite sonhar.
Pobres ouvidos, tão desprotegidos diante destas metralhadoras de palavras!
Fujo dos sons,
Fujo destas revoadas de palavras completamente dispensáveis.

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Nada Além - por Adir Vieira

(Paródia da música “Nada Além”, de Custódio Mesquita e Mário Lago)


Nada além,
nada além de uma congestão...
Chega bem,
é demais para meu bom pulmão...

Acreditando em tudo
que a Souza Cruz mentindo sempre diz
eu vou vivendo assim, assim,
assim, sem ter nariz...

Se a fumaça,
só me causa entupimento e ardor
é melhor deixar as piteiras, amor...

Eu não quero e nem peço
que você sinta horror.
Nada além
do que um simples torpor...
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Paixão - por Adir Vieira

Paixão, pura paixão.

Surgiu de repente, sem que eu esperasse.

Veio arrebatadora,
derrubando conceitos antes tão fincados
e por demais respeitados na minha história.

Paixão compulsão,
que limpa minha mente de qualquer pensamento vão.

Paixão vadia
que experimenta e alucina.

Paixão criança
que brinca e acalma.

Paixão energia
que abre caminhos e briga.

Paixão coração
que poetisa a vida.

Paixão certeza
que dá alegria e que com a paz culmina.

Assim é minha paixão.

Pura paixão.

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O Homem no Lixo é Lixo - por Alba Vieira

Numa manhã fria de um inverno mais rigoroso na Cidade Maravilhosa minha visão é atraída por uma cena patética enquanto passo de ônibus por uma área residencial pobre que retrata perfeitamente este momento no Rio de Janeiro, no mundo e dentro de cada um de nós.
O negro do homem contrasta com as sacolas plásticas brancas “indestrutíveis”: é um morador de rua que se deitou sobre um monte de lixo deixado ao lado de uma caçamba da Comlurb. Aquilo me choca e, aos poucos, a outros passageiros - que ousam enxergar fora, além da sua realidade incômoda: um coletivo lotado, em que pessoas semi-acordadas se espremem para ocupar um espaço que não existe para todos.
Não há espaço para todos e este homem sabe disso.
Sua consciência o conduziu para onde de fato estava: no lixo. Ele é o lixo da sociedade que reduz o homem.
Quantos de nós, em momentos subseqüentes, em dias que se repetem, em semanas intermináveis, em meses e anos que não nos levam além da certeza de que, a cada dia, a luta para sobreviver será maior e a possibilidade de exclusão aumentará, já tiveram estes insights... Quantas vezes já nos sentimos no lixo? Nós somos o lixo a cada vez que permitimos que o homem seja visto assim, feito assim, degradado.
Ah! Como incomoda ver pelas ruas, em número cada vez maior, meninos que saem de casa expulsos pelos maus tratos e abusos e passam a viver ao relento, dormindo no chão sujo, protegidos apenas na parte superior do corpo pelas camisas ralas, imundas, que esticam e prendem até os joelhos para proteger o sexo, num frio de desproteção emocional muito maior do que o do inverno! Como nos causa repugnância quando sobem pela porta de trás dos ônibus moradores de rua drogados, sujos, fedidos, tuberculosos, tossindo sua dor na nossa cara, poluindo o já rarefeito ar dos veículos cheios de gente que volta do trabalho exausta e consome o resto de energia agarrando-se como podem aos apoios dos microônibus que solavancam sem amortecedores e com molas gastas, guiados por condutores explorados, insanos, que extravasam a raiva dos donos das empresas em demonstrações irresponsáveis de direção perigosa!
O que somos senão lixos quando, todos os dias, nos permitimos ser tratados desta forma? Que menos-valia é esta que faz com que permaneçamos impassíveis, sentados em nossos carros, quando crianças molambentas ou deficientes tentam nos vender balas ou fazem acrobacias diante de uma platéia que finge não ver, em troca de trocados que geralmente não vêm? E, nas lanchonetes, quando você, por não ter dinheiro para almoçar, pede um sanduíche barato com refresco e, na primeira dentada, tem seu braço puxado pelo moleque que, com expressão de choro e abandono, pede que lhe pague um lanche porque ainda não tomou café? Você pode ter uma boa refeição ou tem seu estômago revirado numa ânsia de vomitar toda a sua indignação com este estado de coisas, sobretudo porque é extorquido, sem opção, por impostos abusivos que equiparam, nas alíquotas cobradas, seu minguado salário aos ganhos estratosféricos de privilegiados funcionários públicos de alto escalão?
E então, refletindo sobre tantos absurdos que cada um de nós enxerga em sua área de atuação nesta sociedade todos os dias, de tantos anos que já aconteceram e na expectativa de tantos outros que virão, eu me pergunto: a atitude deste homem que se deitou hoje no lixo não foi mesmo um alerta formidável? Porque, simplesmente estando onde estava, sendo o que de fato era, nos jogou, a todos nós que o vimos de súbito, na consciência de que cada um de nós também é ele, a despeito das artimanhas que inventamos e dos disfarces que assumimos para nós mesmos quando negamos, em nossa vida, a sujeira, a dor, a pobreza, a velhice, a nossa sombra, a própria morte. Quando aceitamos a corrupção, os desmandos, a impunidade, as contradições, as safadezas, os descaramentos do poder reinante, somos o lixo que precisa urgentemente ser reciclado. É necessário conscientizar que não é possível deixar fazer aos outros, nossos semelhantes, o que não admitimos para nós.
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Menopausa - por Alba Vieira

(Paródia da música infantil “Terezinha de Jesus”)


Menopausa, menopausa,
não demore pra passar...
Se ela fica por mais tempo
acho que eu vou pirar.

O primeiro foi o calor,
castigava sem cessar,
vinha numa onda quente
e a cabeça a zonzear.

Num segundo esfriava
e eu tremia, sem entender...
Cobre corpo, descobre corpo
a noite toda... dormir pra quê?

E em terceiro foi pior,
isto então não quero mesmo,
ressecada para sempre...
Desse jeito eu não mereço

Mas já sei como se faz
e agora é pra valer:
exercícios, meditação
e cuidar do que comer.

Claro, a natureza é sábia...
Precisamos reservar
os remédios e outras coisas
só pra quem não melhorar.

Equilíbrio, harmonia,
calma e ponderação
muito ajudam nesta fase.
Acreditem, é muito bom!
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Juntando Letrinhas - por Eliezete Luna

Chama, bota-fora,
cora a cara
corra a tranca.
Está frio, está sedento,
sai do vento
meu rebento.

Chacoalha,
coalha, caolha,
estou brincando com
as palavras,
descobrindo que sou boa

Boa no B+A = BA
Boa no lá-rá-rá
Boa sem destoar
BOA PRA ENROLAR…

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Rotina (Por Cada Um de Nós) - por Alba Vieira

Seis horas da manhã. Segunda-feira. Acorda, filha! Está na hora da escola. Anda. Levanta. Mamãe vai se atrasar. Hoje o dia vai ser horrível! Não me atrase, por favor, diz a mãe em súplica quase. Aí, meio atônita, olhinhos inchados, meio apagadinhos, a gordinha fica sentada na cama tentando se apoiar nas cobertas, travesseiro na mão. Nenhum bom dia. Beijo e abraço, então, nem se fala! Hoje é segunda-feira. Arrasta-se até o banheiro, nem se olha no espelho. Corre pra fazer xixi. Boceja cheia de sono. Dos sonhos, não se lembra. Foi cortada, logo cedo. A mãe grita do lado de fora: Anda, menina! Troque logo o uniforme! Daqui a pouco volta ela trôpega. A mãe, feito barata tonta, movimenta-se pela casa recolhendo as mochilas, jogando as roupas usadas na máquina; bebendo leite desnatado em goles rápidos, não sente o sabor do que bebe. Não sossega. Na cabeça, o dia que vai ter se desenrola apressado. A garota não consegue, na mesa, tomar o café da manhã, tenta engolir mas não desce, seu pequeno estômago ainda não acordou. Aquela que se diz mãe, desabalada pela casa, escreve bilhete para a empregada, atende à ligação matutina da mãe dela que se preocupa com seu ritmo acelerado, olha na mesa da sala as contas que o marido, ao sair, esqueceu, e xinga porque então pagarão multa, recolhe seus papéis numa pasta transparente que agarra debaixo dos braços e impede que abrace a filha, coitadinha, que é subitamente retirada do transe em frente à xícara do café com leite pela buzina insistente do ônibus escolar àquela hora da manhã. As duas, mãe e filha, mal se olham nesta corrida desabalada para iniciar um novo dia de uma nova semana que vai correr assim, sem significado, por muito tempo ainda.

Outra casa, outra menina dorme relaxada. Na cozinha, radinho de pilha tocando baixinho, a mulher se movimenta devagar. Já está acordada há um tempo, já olhou no espelho e ajeitou o cabelo, enquanto sonhava ou se lembrava do sonho que teve hoje. O rosto, já lavado, com o perfume de rosas do seu sabonete favorito. No fogão a água já está fervendo e, delicadamente, é derramada por ela sobre as encostas de pó de café que deslizam pelo coador enquanto exalam aquele cheiro gostoso que enche a casa e chega até o quarto da menina, talvez virginiana, que abre os olhinhos e sorri animada enquanto se espreguiça, solta um gritinho e se levanta, feliz. Na cozinha se encontram mãe e filha, se abraçam, se olham, falam pouco, não há muito que falar, as atitudes são plenas de significados. Tomam juntas o café, o pai já saiu mais cedo, foi levado à porta pela esposa que se despediu com um abraço e um beijo demorado de quem vai sentir saudade pelo resto do dia. A escola é só mais tarde. Na mesa, a menina brinca fazendo bichinhos com o farelo do pão comprado um pouco antes na padaria. Falam sobre o dia na escola, sobre os colegas, os medos, as provas, os professores; a mãe conta como era no seu tempo e promete fazer uma comida especial para o almoço. Elas comem com prazer, saboreando tudo; estão ali, somente ali, o futuro ainda não chegou. Tomam café. A menina então toma banho, até ensaia uma música debaixo da água do chuveiro, a sua roupinha espera por ela no cabide do banheiro, veste-se devagar, chama a mãe para pentear seus cabelos e, no espelho, coloca os enfeitezinhos preferidos na cabeça. Saem juntas, mãos dadas, às vezes se solta e corre livre, olhada de perto pela mãe que vai atrás, rumo à escola. Pegam sol, vêem pessoas, conversam enquanto caminham. No pátio se despedem com beijos e sorrisos. Logo estarão outra vez juntas para celebrar esta coisa especial que pode ser a vida.

Nossa vida é feita de escolhas que a todo momento somos chamados a fazer. São duas história diferentes de pessoas parecidas. As meninas estudam no mesmo colégio, as casas ficam em bairros próximos. Mas os destinos são tão diversos em função de opções tão diferentes. Lá na frente veremos que ambas as mães chegarão ao mesmo lugar quase. Tanta diferença na qualidade dos dias não significará nada em termos de progresso material e, em termos concretos, as expectativas dos filhos serão as mesmas para as duas famílias, só que a qualidade da vida sacrificada da mãe executiva em função da esperada conquista do poder pessoal é ruim. Sua filha será emocionalmente defasada, de nada adiantarão os bens que conseguiu adquirir para ela, as melhores escolas não a capacitarão para ter um destino mais feliz: ela não se sentiu amparada, estimulada, seu coração não pôde estar pleno do amor materno. Nem a mãe, na corrida incessante, pôde manifestar o poder pessoal, pois ele se faz sentir de forma mais fácil quando se realiza o que se quer, quando se escolhe, movido pela própria percepção do desejo, pela motivação maior. A mãe que entendeu o seu papel de harmonizar o lar, orientar os filhos, cuidar daqueles que ama, exerceu seu poder pessoal e esteve preparada para, mais tarde, desenvolver sua vida profissional alicerçada pelo conforto emocional de quem faz o que é preciso, que traz beleza e significado para tudo com que se envolve.

Ser mãe, esposa, dona de casa pode ser tão gratificante, especial e importante quanto ter uma carreira. Mas se você é capaz de trabalhar fora de casa, vivendo todos os dias o seu momento presente com envolvimento total com as pessoas e com o que faz, sem sofrer a atração fatal das expectativas do futuro ou as amarras das teias do passado, poderá ser igualmente feliz. O que faz a diferença não é o que se faz, mas como se faz, e se isto corresponde ao seu real desejo e não à expectativa dos outros.
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Silêncio Solitário na Casa Enorme - por Luiz de Almeida Neto

A voz falta, palpita a garganta
Falta fôlego, as pernas cansam
A cabeça lateja
De tanta esperança

E em vez da desgraça
Que antes seria melhor
que toda essa agonia
o momento se prolonga

A casa vazia, um livro cai
em um cômodo distante
A vida sai por um instante
e se esvai
Ainda não era você que tinha chegado
pra acertar as minhas contas
Ainda não fora a iminência do destino
e eu ainda agüento um pouco mais

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Minha Música - por Alba Vieira

Minha sensibilidade é como uma música. E esta música, nem sempre posso cantá-la. Há momentos em que ela soa livre, densa, melodiosa. Nesta hora, todo meu ser vibra, minha alma se eleva e paira sobre mim.
Mas nem sempre é assim. Às vezes sou desafinada e me incomoda esta expressão incompleta, distorcida, incapaz de ser o que é de verdade.
Outras vezes, esta música é parte de um coro e eu me sinto amparada. Ah! Como é delicioso ser junto sendo ainda o que sou!
A minha música pode ser uma balada, pode ser uma marcha - obsessiva marcha que pretende, a todo custo, se impor- e pode ser ainda tão sutil como sinfonia de violinos que vai se infiltrando e se imiscuindo no que de mais profundo existe em alguém.
E esta música, ela é capaz de ser tão branda, tão mansa, que pode fazer dormir uma criança. Pode ser, também, envolvente, enfeitiçar e trazer sob domínio todos os que compartilharem a mesma emoção. Ela pode trazer consolo e pode fazer chorar um ser sensível. Pode festejar, pode ser algazarra ou tão-somente música de fundo.
Mas o fato é que esta música, minha eterna companheira, pode até ser cantada por mim, mas o mais belo som é o que é tirado de mim, roubado por todo aquele que tiver o dom de me fazer vibrar, instrumento que sou.
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Não sei como começar... - por Adir Vieira

Não sei como começar, mas me impressiono com o fato de algumas pessoas dragarem, para si, jeitos e trejeitos daquelas que lhe estão mais próximas. É como um rio que passa, levando no seu percurso as folhas amareladas, as pedrinhas quebradas pelo bater das ondas e o lixo sujo. É assim o que ocorre com Alcinda e Lucíola. Diferentes na sua forma de ser, atesto que, de uns tempos para cá, as confundo no falar. Termos nunca usados por uma vagueiam nos lábios da outra como sua propriedade, com a mesma entonação. A maneira de sorrir descambada para a esquerda, de uma, hoje, na outra, se repete escondendo a covinha que antes ali realçava. Não entendo como o ar, tal qual espelho, reflete de uma para outra (e vice-versa) meios e manuseios que, executados identicamente pelas duas, chamam minha atenção com vibração.
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Minha Alma - por Adir Vieira

Minha alma, cheia de você,
vê em tudo motivo de sorrir.

Minha alma, vazia de você,
se irrita, se enerva, se dilacera em questões sem solução.

Como pode minha alma lúcida, firme, racional,
depender de você, de suas essências, de suas verdades,
se é ela, minha alma, quem decide apreender ou expulsar o que você lhe concede?

Como pode minha alma, à mercê dos seus encantos,
traçar meus caminhos na alegria do ser?
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Eu - por Alba Vieira

Era uma vez uma menina de olhos negros, tão viva e leve quanto clara. Vivia sem complicações, fixada nas tarefas, nas coisas concretas, interessada por pessoas e acontecimentos. Era feliz dentro de sua simplicidade. Tinha seus medos, é certo. Medo do que escapasse ao seu controle, medo do irreal e daquilo que, sendo do mundo real, um dia já a tivesse molestado. Assim, procurava se proteger. Vivia em estado de alerta e organizou poderosas defesas ao longo de sua vida, que acabaram por suprimir sua leveza e espontaneidade. Agora estava impedida por grilhões auto-impostos e precisava rompê-los, custasse o que custasse.
Aventurou-se a conhecer o mundo e, principalmente, a si própria. Estudou muitas coisas - teoria não lhe faltava -, mas sempre esbarrava na prática, onde acabava se repetindo sem promover as verdadeiras transformações de que se julgava capaz. Enfim, era uma tola. A descoberta de suas dificuldades para libertar-se de si mesma acabou lhe trazendo um certo ar de tristeza que procurava disfarçar com excesso de movimento, mas lá no fundo sentia-se estagnada. O que fazer, pensava sempre. Sabia, por ouvir dizer, de todos os caminhos possíveis, mas não se aventurava a percorrê-los de fato. Queria não ter dúvidas, queria ser plácida, queria ter na vida o olhar calmo que sua alma detinha. Mas, que nada! Era insegura. Não conseguia ser o que no fundo era.
Um dia a menina de olhos negros pensou na morte. Como seria não mais ser o que era? Seria tão difícil ser estática e fria? Precisava deixar morrer em si o que não mais lhe servia. Tinha que desapegar de tudo, das pessoas, das posses, das habilidades, dos sonhos, das idéias. O que restaria? Olhou no espelho, através dos olhos negros e não encontrou nada. Estava feito. Poderia partir então. Fixou o nada. Despojou-se de toda luz que pensava ter. Era só trevas, só solidão, só desespero. Contraditório. Porque o real é a vacuidade, a escuridão... tudo mais se constitui em ilusão e até a simplicidade da menina era ilusão. Na verdade era um disfarce. Ela era abissal. Tão negra quanto seus olhos. E estava mergulhada numa densidade difícil de vencer. Não queria mudar nada. Sentiu, pela primeira vez, como era triste, complicada e deprimida. E gostou de ver-se pela última vez.
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