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(Aviso: Os textos em amarelo pertencem à categoria
Eróticos.)




sexta-feira, 31 de julho de 2009

Tema do Mês de Julho: Histórias Fantásticas

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Caríssimos amigos:
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Hoje foram publicados apenas os textos referentes ao Tema do Mês:
“Histórias Fantásticas” (sugestão de Alba Vieira).
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Participantes
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Clarice A. (2)
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Daisy
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Dan
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Saulo Rosa
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Muito obrigado a todos que colaboraram com esta “blogagem coletiva”!
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Um grande abraço!
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Post Inesquecível do Duelos - Indicado por Ana

Como o Tema do Mês é “Histórias Fantásticas”, me lembrei desta história que li aqui, quando o Duelos estava iniciando, e que achei absolutamente fantástica! Adorei! Parabéns, Jorge!



O CANTO DA SEREIA
(JORGE QUEIROZ DA SILVA)

O canto da sereia existiu para mim! Ainda menino, em situação de coragem numa praia perigosa, pude constatar que eu nadava em direção a pedras, no mesmo momento em que a maré subia. O cansaço já tentava me parar e as braçadas não tinham mais a força necessária para me levar à margem. Eis que, de repente, um ruído à minha esquerda me assustou e me mostrou um grande peixe. Eu notava que existia uma corrente d’água e o peixe, para me orientar, fazia movimentos ritmados em direção a essa corrente, tão próxima de mim, a cinco braçadas apenas. Aí então, ganhando força, consegui chegar à corrente e de imediato ser levado até as pedras que me dariam a salvação. Cheguei à conclusão de que o canto da sereia, incorporada naquele grande peixe, exibiu-me o caminho para não morrer afogado.
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Um Sonho - por Alba Vieira

Desperta ofegante, com um gosto bom de beijo na boca, a pele aveludada, a cabeça nas nuvens, o corpo leve, renovado, com uma umidade doce no sexo, que a encanta e desconcerta.
Ao seu lado, dorme ainda a mulher, aconchegada entre as cobertas com o rosto calmo e a respiração tranquila, sua face emoldurada pelos cabelos curtos.
Senta-se com um sorriso nos lábios ainda molhados, o coração galopando e surpresa, recorda-se do sonho que tivera aquela noite. “Nele, era outra que estava com ela, que a olhava com os olhos penetrantes, puxando-a com doçura para si, envolvendo todo o seu corpo num abraço que a fazia estremecer. Sentia seu perfume, o toque das suas mãos ávidas procurando relembrar suas curvas, o seu calor a acordando de um sono profundo, inundando-a de um carinho que jamais esquecera. Foi tomada de um sentimento tão absoluto que soltou suas amarras e navegou no seu corpo, receptiva, experimentando novamente o mesmo amor que tinham vivido antes, se encharcando de doçura, com um prazer extasiante.”
Um prazer que ficou com ela. Seus dias eram felizes. Ela vivia um relacionamento estável com alguém de Terra e com uma Lua em Aquário que sendo generosa, toda meiguice e espontaneidade, guardava entretanto seu coração, que ainda inseguro do amor que lhe devotava, mesmo após tantos anos juntas, não se permitia uma entrega total.
Seu primeiro e grande amor, no fundo ela sabia que era a outra e que, soterrada no fundo de sua alma, havia ainda a esperança de tê-la novamente. Não era possível aceitar que um amor daquele, tivesse terminado sem explicação, que ela amasse outra pessoa e tivesse reconstruído a sua vida.
Não, ela sentia que ainda era seu e só seu o coração dela. E num cotidiano esquizofrênico, ela se dividia entre o amor que sentia e vivia na realidade daquele momento com a mulher amiga, carinhosa, descomplicada que estava com ela e o amor primeiro, vivido somente no íntimo, em segredo, pela mulher de longos cabelos, profunda, enigmática, com quem conversava em pensamentos e enviava sentimentos ardentes olhando o céu, mirando as estrelas e a lua cheia, ouvindo as suas músicas que, diariamente, insistiam em chegar aos seus ouvidos para que jamais a esquecesse.
Aceitava esta realidade que para ela era absolutamente normal, porque de fato, amava as duas pessoas, cada uma delas de uma forma, num universo diferente, as duas habitando o seu ser, inspirando-a e fazendo feliz.
Levantou-se então da cama, ainda imersa naquele universo paralelo, vibrante e apaziguada, trazendo aquela vivência só dela.
No banho, enquanto a água quente escorria pelas suas costas, relembrava cada instante, ainda incrédula, porque lhe parecia ter sido tudo tão real, como se a outra tivesse estado ali mesmo e houvessem se amado profundamente. Ela ainda podia sentir as impressões dos seus carinhos em sua pele, seu perfume no seu corpo, inconfundível, misto de presença e abandono, despedida e recordação.
Enfim, enquanto ensaboava as pernas, seus dedos trouxeram até seus olhos atônitos, neles enrolado, um fio de cabelo longo, um cabelo da outra, sem dúvida alguma, fininho e castanho-claro, testemunhando de forma inequívoca, a sua visita.
E, da mesma maneira como narrado no mito de Coleridge, ela se fazia a mesma pergunta.

“E se você dormisse, tivesse um sonho durante o sono, e nesse sonho você fosse ao céu, colhendo lá uma flor bonita e exótica e, depois, ao acordar, visse que a flor estava em sua mão? O que faria?”

O que faria agora?

E você, leitor, como agiria numa situação desta?



Visitem Alba Vieira
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Prenúncio - por Ana

Estava eu voltando do trabalho, por volta das 17 horas, indo para pegar o ônibus para casa. Quando estava atravessando uma das pistas internas da rodoviária, repentinamente me vi em outra situação.

Me vi, à noite, ao lado de uma lanchonete na própria rodoviária, olhando uma mulher loura que aguardava alguém. Então surgiu um Passat meio velho que parou ao lado dela e o homem que dirigia abriu a porta para que ela entrasse. Neste momento, o cenário mudou novamente: eu estava, então, num quarto de hotel e via o casal sentado na cama conversando. De repente, o homem levantou, tirou um revólver da cintura, atirou na mulher - que caiu morta na cama - e logo em seguida sentou-se novamente na cama e atirou nele mesmo, que caiu deitado ao lado da mulher. Fiquei olhando para os dois corpos feridos, ambos, no coração.

Então, de repente, estava eu novamente na rodoviária, na situação normal, mas já tendo atravessado a pista. Ao invés de me dirigir ao ponto do ônibus que me levaria a casa, parei para pensar. O que tinha acontecido? O que significava aquilo tudo? Seria um aviso? Se fosse, não havia acontecido nada ainda e eu deveria alertar a mulher a respeito do risco que ela estava correndo. Decidi ficar exatamente no local em que me vi antes, ao lado da lanchonete, esperar a noite cair e a mulher chegar para falar com ela. (Nem pensei que ela poderia me considerar uma louca de pedra e ter mais medo de mim do que do homem.)
O tempo foi passando... Às 20 horas resolvi questionar minha decisão. E se não fosse naquela mesma noite? E se fosse na seguinte, daí a uma semana, daí a um mês? Neste caso, eu estava ali à toa, não fazia sentido nenhum ficar esperando um fato que eu não sabia quando iria ocorrer. E se já tivesse ocorrido? E se não fosse nada disso, fosse apenas uma primeira alucinação de um quadro esquizofrênico que estava se instalando em mim sem que eu me desse conta?
Às 20:05 resolvi ir embora.

No dia seguinte, indo para o serviço de manhã cedo, li uma das manchetes expostas no jornaleiro:
POLICIAL MATA EX-MULHER PSICÓLOGA E SE SUICIDA
Comprei o jornal. Li a reportagem que descrevia exatamente tudo o que eu vira no dia anterior: o Passat, o local do encontro, a ida a um hotel para conversarem sobre o divórcio, os tiros nos corações, os corpos mortos sobre a cama. Mas nada me impressionou mais do que a hora em que eles se encontraram na rodoviária: noite anterior, às 20:15.
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O Menino e os Causos - por Clarice A.

Nas férias, a família, o pai, a mãe, os cinco filhos e uns amiguinhos das crianças iam para as chácaras que o pai comprara.
A primeira era longe, viagem de ônibus, trem e lotação, mais uns vinte minutos de caminhada até a casa, muito simples de telhas aparentes e chão de cimento. Água era de poço e energia elétrica ainda não tinha chegado por aquelas bandas.
A diversão era garantida e as crianças das casas próximas - e o próximo nem era tão próximo assim - vinham brincar com eles.
O dia passava rápido e à noite era a vez dos adultos aparecerem para uma prosa. O pai acendia uma fogueira na frente da casa e todos se sentavam em volta. As cadeiras eram para os adultos, as crianças sentavam-se nos degraus da varanda ou no chão (nas cadeiras só se sobrasse lugar). Conversa vai, conversa vem e o assunto invariavelmente enveredava pelos caminhos do assombro. Mulas sem cabeça, sacis, assovios e psius misteriosos no meio da noite, e ele, o mais assustador, com seus uivos horripilantes, pelos e dentes enormes, o lobisomem. Sim, alguns já o tinham visto, com esses olhos que a terra há de comer. Nas noites de lua cheia, ele andava à solta assustando e fazendo vítimas.
As crianças sentiam medo, juntavam-se umas às outras à procura de segurança - o medo compartilhado diminui um pouco. O menino, quarto filho do casal, era o mais medroso e os outros se aproveitavam disso para colocar mais medo nele. Quando as conversas iam por esse caminho ele protestava dizendo que não era hora de conversar essas coisas, mas ninguém lhe dava bola. Na verdade, essas coisas só se conversavam nessas horas. Que graça tem contá-las se não assustarão ninguém?
O menino era falante, inteligente, memória excelente e curioso. Alimentava muito bem seus medos, pois apesar de medroso não deixava de ler gibis de histórias de terror, zumbis, Frankstein e o temível Conde Drácula. Para dormir colocava o terço e o catecismo embaixo do travesseiro e rezava até o sono chegar, o que acontecia rapidamente.
Na roça, como eles chamavam a chácara, havia muitos morcegos e os irmãos sempre levantavam a dúvida de que algum deles fosse o Conde Drácula.
Quando iam deitar-se a mãe apagava as velas e os lampiões e o quarto ficava um breu. Durante um tempo os irmãos o assustavam, certamente para esquecer os próprios medos, mas cansados do dia de brincadeiras e muito próximos uns dos outros, alguns dividindo a mesma cama, adormeciam logo.

A segunda chácara era bem maior e, como a anterior, a água era de poço e também não havia luz elétrica. A casa simples bem no estilo da outra, um pouquinho melhor.
À noite, a fogueira, os vizinhos e os “causos”. A vizinha mais próxima era uma senhora de idade que vivia sozinha num casebre de estuque no sítio ao lado. Suas histórias tinham como protagonistas as cobras. A urutu cruzeiro - que, segundo ela, se chamava assim porque tinha desenhada uma cruz no alto da cabeça - era a preferida, embora também falasse nas jararacas. Uma vez entrou uma urutu das grandes em sua casa e foi para baixo da cama. O cachorro que a expulsou e perseguiu pelo mato nunca mais voltou.
O menino, quanto mais rezava, mais assombração lhe aparecia. Já não bastavam as noites de lua cheia e suas criaturas? Agora as cobras, que existiam de verdade - certeza absoluta - podiam aparecer até com o dia claro e ele se borrando de medo de dar de cara com uma urutu cruzeiro pelas trilhas que andava. Drácula não é conhecido por aqui mas, em compensação, cobras, escorpiões e os já conhecidos saci, mula sem cabeça e ele, o lobisomem que também era visto na lua cheia, a frase conhecida reforçando a visão: vi sim, com esses olhos que a terra há de comer.
O menino calçava a bota do pai para não ser surpreendido por um desses seres rastejantes e tentava em vão mudar de assunto com sua ladainha: não é hora de conversar essas coisas. Não dava para entrar porque ficaria sozinho lá dentro e na verdade queria estar ali, ouvir as histórias, nutrir seu medo.

O tempo passou, o menino cresceu, casou, tem filhas e o medo de assombrações ficou no passado. Espremido na classe média, as filhas cursando a faculdade, aposentado e trabalhando de segunda a segunda, o que agora é incrível, fantástico, extraordinário é viver com a grana curta, a violência, o desgoverno e as balas perdidas.
Saudades do lobisomem e do Conde Drácula.
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Apartamento 74 - por Daisy

“Você ligou para a casa da família Souza. Se quiser falar com o Dr. Paulo, ligue para 3335-0102 ou para 5554-0203 ap. 74. Obrigado”. Que estranho, pensou Marília, o que será apartamento 74?

E, como num filme, viu claramente aquela reunião no hospital, uns 15 anos atrás.

Já trabalhava lá há 3 anos, após ter se formado com louvor na Faculdade de Medicina. Era apaixonada pelo que fazia e sua vida era o hospital e o hospital; nada mais...
Esguia, pele clara e cabelos castanhos curtos ondulados que, volta e meia, caíam sobre os grandes olhos verdes amendoados; era muito bonita, mas passava desapercebida pelo modo despojado de se vestir.
Apesar de estar concentrada e atenta a tudo que estava acontecendo, quando ele entrou, seu coração começou a bater mais forte e descompassado. O que era aquilo?? Nunca havia experimentado nada parecido, nem mesmo quando namorou um colega da faculdade que era completamente louco por ela.
Alto, pele morena e cabelos escuros bem cortados que realçavam os olhos pretos e os lábios finos; era muito bonito e por onde passasse chamava a atenção. Não deixou de notar aqueles olhos verdes observando-o.
Já na primeira troca de olhares, podia-se detectar um magnetismo e uma atração imensa entre os dois. Não foi necessário muito tempo e já estavam conversando animadamente.
Paulo era um advogado conceituado, sócio de um dos maiores escritórios de advocacia da cidade, e estava ali a convite de um amigo médico que queria uma opinião jurídica sobre um projeto ambicioso de saúde do hospital.

Marília e Paulo começaram a sair e logo já estavam falando em casamento. Apesar de viverem em mundos totalmente diferentes, o amor era tanto que desculpava a falta de tempo, os atrasos, os plantões e as constantes viagens de negócios.
Casaram-se e, como sempre acontece no início de um relacionamento, a vida ia passando e construindo uma rotina confortável e segura; Marília absorvida pelo trabalho no hospital e Paulo constantemente viajando para acompanhar os casos mais importantes do escritório. Vieram os filhos: um menino com os olhos verdes da mãe e uma menina com os olhos pretos do pai.
O tempo ia passando e o amor arrefecendo. Nem Marília nem Paulo se deram conta do que estava acontecendo.

Numa de suas viagens, Paulo conheceu uma advogada com quem teve bastante contato e muitas reuniões para avaliação de alguns casos que estavam sendo acompanhados pelos dois escritórios onde trabalhavam. Sônia, que se separara há um ano, estava carente e encontrou um ombro amigo em Paulo. Ele, que também estava carente, sentiu-se renovado ao ver que estava sendo muito importante para ela.
Certa vez, foi Sônia quem viajou para as reuniões com Paulo. Após uma delas, saíram para jantar e conversaram tanto que quando se deram conta, já era madrugada. No dia seguinte, quando acordaram, estavam no quarto de um flat, felizes, confusos, amedrontados, mas decididos: um não conseguiria mais viver sem o outro.
Paulo atravessou uma fase muito difícil em casa, tendo que inventar desculpas a toda hora, até que resolveu comprar um flat, onde se encontraria com Sônia e onde, com o tempo, passaria a viver definitivamente com ela.
Sabia que não teria coragem de enfrentar Marília para uma conversa sobre separação. Então, decidiu deixar uma mensagem na secretária eletrônica de sua casa onde mencionava o número de um apartamento – o seu flat com Sônia. Tinha esperança de que Marília, ao ligar para casa e ouvir o recado, ficasse intrigada e viesse conversar com ele. Aí, então, seria mais fácil explicar tudo para ela. Só que isso não acontecia e o tempo ia passando, impiedoso.

Por outro lado, Marília, acumulando o trabalho com o cuidado com os filhos, inconscientemente, ia se afastando cada vez mais.
Um dia, houve uma reunião no hospital para que o novo coordenador fosse apresentado ao corpo clínico. Marília estremeceu quando avistou seu primeiro amor de faculdade, Plínio, indo em direção ao palco. Quanto tempo!!! Ele continuava o mesmo: aqueles olhos azuis, aquele cabelo louro já com alguns fios brancos, aquela pele morena.
Após a apresentação, durante o coquetel, Plínio veio falar com ela. Foi como se o tempo não houvesse passado. Marília, sem se perceber carente, foi ficando íntima. Plínio, que não se casara e sempre alimentara a esperança de um dia reencontrar seu primeiro amor, acolheu aquela intimidade com prazer. Conversaram sem ver o tempo passar. Plínio levou Marília para casa e ficou de telefonar no dia seguinte. Encontraram-se no hospital para almoçar; saíram para jantar outras vezes e quando perceberam, estavam num motel amando-se como dois adolescentes. Marília ficou muito mal, sem saber o que fazer. Plínio, sabendo que o casamento dela já não existia realmente, insistiu que ela conversasse com o marido sobre separação. Marília sabia que não conseguiria encarar Paulo para uma conversa dessas.
Resolveu, então, que ligaria para casa deixando um recado evasivo, contando que Paulo, ao ouvir, achasse estranho e a procurasse. Aí ela explicaria a situação.

“Você ligou para a casa da família Souza. Se quiser falar com o Dr. Paulo, ligue para 3335-0102 ou para 5554-0203 ap. 74. Obrigado”
Que estranho, pensou Marília, o que será apartamento 74?



Visitem Daisy
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Glauber e Buñuel na Terra do Surreal Usando Fragmentos de Outros Tempos Passados - por Dan

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Numa Terra em Transe, onde o Dragão da Maldade Batalha contra o Santo Guerreiro, nossos dois heróis, Arthur e Thelio, andam pela Via Láctea, por entre Cabeças Cortadas e Heresias, procurando o Discreto Charme da Burguesia. O que nossos heróis não sabem é que o Charme Discreto se perdeu nas fezes de uma burguesia que não é mais a mesma, ela mesma se perdeu, para uma outra que não é aquela. Esqueceram de falar que em Brasília existem duas torres também...

Tempos difíceis, tempos de ostentações, coronelismos daqui e dali. Num mar de sem fim.

Thelio olhou para frente andou pela Terra do Sol. Não viu nem Deus, nem Diabo. Conheceu o cangaceiro Corisco. Salvaram os passarinhos de frente. Soltaram da gaiola. Beijaram os beija-flores. Enquanto isso Arthur por entre os Sertões Veredas, numa zona estritamente modernizada, com ares de Refazenda encontrou-se com um Abacateiro que lhe ensinou a fazer renda, e a refazenda toda, por entre o espírito de São Thiago, no mesmo momento que a roubalheira corria solta no mercado da luxúria interna. Os Esquecidos caminhavam pelas ruas à procura de suas mães que trabalhavam em bordéis locais...
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Por entre Mulheres e Luzes em Andaluz, Os Palhaços e Giulietta assistiam assustados a uma dança de Espíritos que pelas Estradas da Vida guardavam o Sétimo Selo de Histórias Extraordinárias, levadas a cargo por uma produção de senadores que só faziam questão de seus ganhos no fim do mês com a Belle de Jour, grandes Subida ao Céu. Assim cansados de toda intriga palaciana nossos heróis se encontram outra vez na mesma Nave Que Va, e agora junto com Giovani Mariti, contavam Histórias de seus Retalhos da Vida para pessoas menos cultas e para pessoas sem muitas experiências nestes assuntos mercadológicos de latrocínios.

No final das quantas, Nossa Vida Não Cabe Num Opala, A Mulher Continua Invisível, Michael Jackson virou assunto de Globo Repórter, muito Além do Cidadão Kane, Há Poeira Nas Estrelas, O Caso Claudia não foi resolvido, A Terra É do Homem, Nem de Deus, Nem do Diabo e o Tempo Não Para...

Arthur, num grito soberbo de contestação, GLAMOU A TODOS:

- VIVA CAZUZA...

E Thelio?

Bom, Thelio é outro problema, saiu pelas esquinas, El Bruto, atrás de sua Viridiana, carcomido pela intolerância dos seres e saudoso de um bom vinho com queijo e marmelada, como nos áureos tempos do El Gran Calavera em 1949...

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Visitem Dan

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Ligeiramente Grávidos - por Esther Rogessi

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Noite de lua...
E eu, muitíssimo exausta, sentei sobre as madeiras amontoadas embaixo da árvore.
Carlos tinha pegado lenha seca na esperança de estruturar o que ele denominou ser uma fogueira – desajeitada arrumação de paus e gravetos, o cotidiano, a mesmice do dia a dia, tinha nos consumido a paciência.
Estávamos estressados... Um simples ruído, meio ao mato, nos sobressaltava, amedrontava.
Acostumados com a cidade grande e com toda sua peculiar agitação, com seus arranha-céus, buzinas de carros e o passar neurótico dos transeuntes a esbarrar em nós...
Aquele silêncio desmedido... Onde só se ouvia o chilrear longe e assustador das aves; o canto das cobras; o lamento tal qual o choro de bebês – das rãs – no riacho ao lado; as incontáveis luzinhas, na escuridão, como se fossem piscas-piscas – os vaga-lumes – nos levando a refletir... Se não fosse tamanho medo – diríamos ser: o céu na terra!
Estávamos em férias, nosso casamento estava uma loucura. Não havia entendimento. A nossa convivência estava se tornando insuportável. Não conseguíamos ver encanto algum em nada... Até mesmo à hora de dormir sempre havia uma desculpa para que não fôssemos juntos à cama... Um caos!
Resolvemos, então, viajar. Ir à fazenda de amigos que insistentemente nos convidavam...

Não tínhamos filhos, ainda. Carlos não os podia gerar por ter varicocele – varizes do testículo, muitos não têm válvulas no interior das veias do testículo para que impeçam o retorno do sangue ao coração: sangue drenado. Assim sendo, acontece o refluxo, no sentido errado, permitindo que este volte ao escroto, ficando parado e causando inchaço, vindo a formar a varicocele. Ah! Como eu queria ter filhos...
Isso afetava e muito a nossa vida em um todo... Principalmente sexualmente. Ele se julgava incapaz e isso estava levando-o a impotência sexual. Carlos tinha passado por uma cirurgia, porém sem sucesso até então.
Sabemos que a varicocele pode ocorrer em qualquer dos testículos ou em ambos. Comumente acontece do lado esquerdo, devido ao fato da veia espermática deste lado desembocar na veia renal esquerda por ser um ângulo reto, isto é, de 90°, sendo a pressão deste lado mais forte - mais alta - que a do lado direito, onde a veia espermática desemboca de forma oblíqua.
O grande sonho de ter crianças a correr na casa, de ser chamada de mãe... de sentir a sensação da gestação, passou de sonho a utopia... Sonhos, às vezes, são realizados... Carlos por vezes falava em adoção... Não! Não quero... Quero os meus! - eu respondia.
Tentava convencê-lo a usarmos a metodologia de inseminação artificial humana. Isto eu queria, seriam filhos nossos...
- Por que não, Carlos? Tentemos esta metodologia com o seu esperma! A criança será nossa, de fato! Quantos casos deram certo... Até mesmo com mulheres estéreis. Não o somos, você tem uma deficiência que pode ser tratada, resolvida em parte! O que importa é a nossa realização em termos filhos, em sabermos que o que construirmos não será vão. Teremos continuidade, descendência...

Assim, resolvemos viajar, dar uma oportunidade a nós mesmos, ao nosso casamento. Saímos em férias no mesmo período... E ali estávamos, rumo à fazenda.
Em uma noite fria e enluarada, meio ao mato... ouvindo o chilrear dos pássaros, o canto das cobras, e como se fossem bebês a chorar no riacho – as rãs – doce ironia do destino ou profecia através da manifestação da natureza...?
Só sei que o medo nos aconchegou, senti o hálito de Carlos bem no meu rosto, suas mãos como que a me proteger, protegendo-se... o calor da fogueira, desajeitada tanto quanto nosso casamento.
Senti ternura! Descobri que existia amor e muito amor entre nós...
Ali, no meio do mato, às margens do riacho, em noite de lua, nos amamos, fizemos amor...
Gozamos... férias acumuladas. Voltamos com sintomas estranhos e ligeiramente... Grávidos!



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Meu São José, Meu Fetiche - por Jorge Queiroz da Silva

Minha fé se mantém irredutível até hoje e sempre se fortalece com as minhas visitas ao Templo de São José, na rua Primeiro de Março, no Rio de Janeiro, local onde pude sentir sua presença bem de perto, quase que fisicamente.
Em todas as turbulências de minha vida, era no silêncio daquela Basílica que eu encontrava a concentração devida e as respostas a todas as perguntas que eu fazia ao meu Santo conselheiro.
Foram nos diversos momentos de busca de uma nova carreira profissional que eu encontrei a segurança, nas tomadas de decisões e nos caminhos por onde seguir.
Sei, com bastante certeza, que ocupei tanto o meu protetor que ele acabou por me colocar bem junto dele, ali bem em frente ao Fórum, onde permaneci por mais de doze anos trabalhando num grupo cimenteiro.
Ali mesmo tive a oportunidade de confirmar, mais uma vez, a sua proteção e a certeza de que eu estava, verdadeiramente, sob seu manto e seu cajado.
Num determinado dia, em que fui convidado para almoçar com amigos de profissão num restaurante bem em frente à Igreja, estava eu me dirigindo para o restaurante quando fiz menção de atravessar a Rua Primeiro de Março e, não sei por que motivo, ao invés de atravessar, eu dei um passo para trás, o suficiente para que um carro de aluguel esbarrasse em mim e, em seguida, me jogasse para cima do seu teto, onde vivi segundos de incerteza.
Enquanto eu viajava no ar e pensava sobre o que seria de mim, em frações de segundos, pude sentir que pousava, de pé, na ponta da calçada.
Do outro lado da rua um senhor, mero expectador do fato, em aplausos gritava:
- Bravo! Bravo! Parece até um dublê de cinema!
Eu, muito assustado, ainda contemplei o táxi, que seguia em ziguezague a uns setenta quilômetros pela Avenida.
Passei a me observar, percorrendo rapidamente as mãos por todo o corpo, e senti que tinha sido apenas um grande susto, apesar de minha roupa estar amarelada do lado esquerdo, revelando a cor da tinta do carro nela impregnada. Apenas um pequeno corte no pulso, que nem sangrava e só ardia, provocado pela pulseira do meu relógio, me incomodava e firmava o que havia ocorrido.
Agradecido ao bom São José, não deixei de comparecer ao almoço combinado. Estive no restaurante com toda fé e galhardia e quando indagaram sobre as manchas na minha roupa, expliquei, prontamente, que eram do carro que havia me atropelado.
Com aquele fato verídico, eu somente posso crer numa coisa nesta vida: assim como temos o dia certo para nascer, também temos o nosso dia certo para morrer. Mas ainda posso afirmar que quem tem padrinho não morre pagão!



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Lá pelos 5 Anos - por Laila Braga

Sentado ali via aquele pequeno aviãozinho se movimentar nos céus manchados da cidade grande. Bolhas e pequenos rastros. Tudo estava ali parado disjunto e sem qualquer significação. E ali, sentado a olhar.

Olhar sempre me apareceu como estratégia. Tinha inveja dos autistas. Confesso-lhes que ainda a tenho em outras proporções. Sempre que podia exercitava o meu talento nato de olhar e me tornar alheio ao mundo. Mesquinhez que as pessoas têm de ser feliz. Mania atestada e abestalhada de querer coisas só pra poder querer mais depois. Eu não. Ali enquanto olhava com meus olhos de meninices – nunca entendi bem esse termo, mas meu avô sempre dizia: “pare de meninice” – e me tornava ausente, matutava com meus botões, não aqueles botões de ligar e desligar as coisas, aqueles botões que a gente tem dentro da cabeça, e que liga alguma coisa do cérebro e se desliga sozinho quando a gente dorme, sabe como é? Pois sim, estava eu com meus botõezinhos cerebrais tentando entender porque se perde tanto tempo reproduzindo alguma coisa. Sempre quando eu parava pra brincar com minhas coisas imaginárias, tinha alguém pra dizer “esse menino vai ficando maluco, coisa besta de enxergar ‘trens’ que não existem”. Nem sabem eles que tenho medo de trem. Nunca inventei um trem. Inventava outras coisas que já existiam. Inventava dentro da minha cabeça e quando eu tirava de lá ficava lindo, eram sempre perfeitas as minhas invenções. Parecia maluquice de criança, mas não era não. Eu enxergava, sentia e dava vida a todas as minhas invenções. E elas eram minhas, só minhas. Nunca gostei muito dessas coisas de compartilhar.

Quando eu inventava coisas que já existiam, as pessoas achavam maluquice, mas quando as pessoas perdiam seu tempo inventando coisas que já existiam, era coisa de gênio. Avião... Rum... Jeitinho mais feio de imaginar um pássaro grande. E se eu inventar um avião? Nunca que ele vai ser feio e malfeito daquele jeito. Não invento aviões não, prefiro inventar outras coisas. Certa vez inventei um barquinho. Chamo de barquinho por que era barquinho mesmo. Era cara de barquinho de papel que se parece com chapéu de soldadinho de chumbo, mas inventei-o pra me caber dentro e andar devagar sobre as coisas. Nada de avião: nem de papel, nem de nada. Até os de papel são rápidos demais, aí não dava pra olhar as coisas direito. E como sou um olhador nato, não gosto de inventar coisas que não me deixem olhar direito. Avião é pra gente grande, não pra gente alheia. Talvez eu tenha medo de avião, mas não é medo de cair não. É medo de coisa rápida mesmo. Igual trem. Se a gente se põe a correr, tem sempre alguém que vem atrás pra entender por que, mas se você fica quietinho? Ninguém mexe. Não mexe mesmo. Gente quietinha assusta outras gentes. Eu sei como que é, sempre fiz isso...

Continua...



Visitem Laila Braga
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O Último Gole - por Luiz de Almeida Neto

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O que vale mais que o tormento da eternidade? Nada. Tem umas coisas que o ser humano desafia só por causa de sua natureza. É evidente que sempre reclama à nossa consciência a possibilidade de não haver punição eterna. Evidentemente há a hipótese de inexistência de céu e inferno. Mas… E se existisse… Haveria algo que valeria sofrimento tão pujante? Nada. Nem mesmo toda a razão da sua própria existência? Talvez nem mesmo isso. O sofrimento é capaz de destruir tudo, e até sua existência não faria sentido sem uma perspectiva de futuro, ainda que tal perspectiva fosse a própria morte.

Gemiti, homem já velho e criado pelos bares, regado a belas doses e desabrochado nos mais belos colos da Rua do Alto Mandamento, acordou certa vez pra sempre, ou dormiu certa vez pra sempre, depende muito do lado do qual você observa. Olhando para o local onde falecera, percebeu que seu copo jazia ali, inerte, à espera de sua boca sedenta, mas não conseguia tocá-lo. Tentou muitas vezes, e, malogrado o êxito de sua campanha rumo ao gole de rum, deu-se por satisfeito de ficar ali, embasbacado, olhando para a garrafa abandonada.
Aí chegou “a inesperada”, com foice, capuz e tudo mais quanto tinha direito. Toda de preto pra não deixar dúvida. Até o vento traiçoeiro da meia-noite bateu, e percebia-se, inclusive, certos uivos pelo ambiente. Chegou perto de Gemiti, como quem não queria nada, sem que ele pudesse perceber, mas, naturalmente, era como se sempre estivesse ali, como se ele sentisse sua presença e lhe pudesse farejar. Saiu em disparada pela Rua do Alto Mandamento e só quando já ia à altura da Rua do Almirante se deu conta que não havia ninguém. Tudo era sereno.
A neblina imperava com seu ar pesaroso como se já fosse o velório. Gemiti, incrédulo, relutava, sem acreditar que a divina hora chegara, mas teve coragem: decidiu esperar ali, pra ver o que sucederia, e… principalmente… o que lhe esperava. Pensou que talvez pudesse invocar alguém, algo, qualquer coisa. Não tinha nada. Ficou cabisbaixo, como que a matutar sobre qual a atitude mais honrada, o que melhor fazer diante daquilo tudo.
Nesse ínterim, subia a Velha Dona Morte, com uma passada desleixada, com sua árdua e perene tarefa, com uma tranquilidade que não parecia verossímil aos olhos do iminente defunto, acostumada e relaxada na hora cabal pra cada um, costumeira sempre a ela. Chegou perto, e seu bafo era horrível, mas, mesmo assim, lendo um papel, teve de falar.

- Gemiti dos Santos?
- É… É… Eu - eu… Me-me-smo.
- Vamo. Tá na hora.
- Hora de quê?
- De subir, né, querido?
- Então é isso? Ao menos quer dizer porque vou subir?
- Não sei muito bem. Não sou eu que resolvo isso. Mas você desenrola quando chegar lá.
- Desenrola uma porra! Eu tô sabendo que não tem jeito. Daqui pra frente não tem mais chance. Já dancei.
- Mas não é assim. Com uma boa justificativa a gente sempre desenrola alguma coisa por ali.
- Desenrola nada! O que tá feito, tá feito.
- Que nada! Com uma boa justificativa a gente sempre pode mudar o peso dos atos.
- Ih! Sei não…. Olha lá, hein! Depois eu entro errado aí e não tem mais volta!
- Olha, eu tenho um cara que tá esperando no cruzamento da Frei Caneca com a Escrava Isaura. Morreu de facada. Imagina a situação! E tu só aqui enrolando. Tá ruim assim.
- Mas eu não tenho direito nem a um último desejo?
- Mas tenha pena do pobre coitado que tá lá estirado no chão. Já tá juntando mosca por causa de você aqui.
- Caramba! Tá tudo certo. Mas se eu pudesse, ao menos…
- Ao menos o quê?
- É que eu deixei um serviço incompleto aqui entre os homens.
- Conversa!
- É sério. Palavra.
- Que foi que ficou pela metade?
- Pela metade, não. Mas ainda falta só uns três dedinhos assim…
- Mas pelo amor de Deus! A essa hora, Gemiti?! Assim não tem quem aguente!
- Mas que “vexame” é esse também? É essa hora sim! Qual é a outra que eu tenho?
- Olha, o cara tá lá esperando, viu?! Isso é até pecado!
- Mas como é que já se viu! Ser autoritário desse jeito! E mexendo com coisa tão importante!
- Tá bom. Faço um acordo então. Você fica até beber tanto quanto conseguir. Desisto! Mas também… Quando não conseguir mais beber… Eu volto… E você desce direto!
- Direto? Sem nem um julgamento? Mas isso não é inconstitucional?
- Direto!
- Tá bom. Mas só quando eu não conseguir mais entornar nada. Tá certo assim?
- Tá feito. Tchau.

E foi assim que Gemiti, acordando com a face em cima de uma mesa de bar, teve a desfaçatez de olhar bem na minha cara e dizer: “De hoje em diante não bebo nunca mais! Nem mais um gole!”, e nunca mais voltou. Deixou inclusive a conta pendurada nas minhas costas.
Sei não. Acho que só tem duas coisas que fazem um homem enganar aquilo que não pode ser enganado: a covardia ou a preguiça. Um brinde aos preguiçosos pela sua inocência.



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Histórias Fantásticas - por Marcus Nunes

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Bioy ha sido muy bueno y muy indulgente conmigo.
Él es una persona para la cual mi vida no tiene secretos.
Jorge Luis Borges
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Domingo à noite terminei a leitura de “Histórias Fantásticas”, uma compilação de contos do escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Ora, vocês diriam, todo livro de contos é uma compilação. Sim, pequenos gafanhotos, eu concordo. O que quis dizer é que este livro, ao contrário de outros livros de contos, é uma antologia de Bioy Casares. Estes contos foram retirados de outros livros do autor.
Antes que me esqueça, duas observações. Em primeiro lugar, devo elogiar a belíssima edição da Cosac Naïfy: capa dura, ótimo projeto gráfico, resumo dos contos ao final do livro e bibliografia do autor, incluindo os artigos publicados na revista Sur e os livros publicados conjuntamente com outros autores e com pseudônimos. Em segundo, ler Bioy Casares é praticamente uma obrigação para mim. Além de argentino, ele era muito amigo de Borges. Eram amigos a ponto de haver na Argentina um livro de 1664 páginas com os diários escritos por Bioy Casares entre a década de 30 e a de 80, após seus encontros. Este é um dos livros que mais quero ler atualmente.
Não sei se houve alguma influência ente os dois amigos, mas as Histórias Fantásticas de Bioy Casares me lembram muito as de Borges (são mais parecidos entre si do que com Cortazar, por exemplo) no sentido em que tratam o absurdo como algo que poderia ser real. Não fazem como Tolkien ou Lewis; eles são da escola de Poe. Não constroem um mundo totalmente novo para ambientar seus contos. O fantástico em seus mundos é encontrado em um detalhe aqui, outro acolá. É algo que poderia ocorrer facilmente em nosso mundo, desde que observados alguns detalhes.
Ao contrário do que ela afirmou, eu ainda prefiro Borges a Bioy Casares. E o motivo que me faz afirmar isto é o mesmo motivo que a faz afirmar o contrário: Borges é mais conciso. Nos contos borgianos, praticamente não há frase desnecessária. Todas, em maior ou menos grau, são importantes para a história. Isto acaba favorecendo as releituras, pois em cada uma delas descubro novas nuances. Pierre Menard, autor de Quixote, que o diga. Já a estrutura dos contos de Bioy Casares está mais próxima do romance: há trechos que poderiam ser omitidos (sugeridos – adoro esta palavra em narrativas) sem prejuízo. Mas ainda assim ele está muito longe dele ser um escritor for dummies: não são todos os escritores que conseguem supor um mundo onde Cartago venceu as Guerras Púnicas e o País de Gales não existe. E fazer tudo isto ter sentido.
Os primeiros contos do livro são melhores que os últimos. Creio que devido à idade, já que nesta edição estão organizados em ordem cronológica. Dá para notar uma certa perda de qualidade, assim como ocorreu com Borges. Mas perda de qualidade, aqui, como no caso de Borges, significa ir de um nível excepcional para um nível muito bom. Ainda que inferiores aos primeiros, os últimos contos ainda são imperdíveis. Mas quase todos me deixaram de boca aberta: mas então era isso que estava acontecendo?
Eu, como fã de literatura fantástica, recomendo. São contos divertidos, bem escritos, bem traduzidos (as notas são bastante elucidativas) e surpreendentes, merecedores de estarem ao lado dos grandes escritos latino-americanos.



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Edgar Allan Poe, J. R. R. Tolkien.

O Desconhecido e Sua Pior Face - por Nina

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Em uma noite de abril, os alunos e professores do Colégio Fantástico passaram algumas horas – ou quem sabe, várias horas - na escola.
Júlia, João, Luiza e Matheus talvez tenham passado o equivalente a uma eternidade presos naquele ambiente tão familiar, tão perturbador.
Os amigos Júlia, João e Luiza eram mais que irmãos desde os 11 anos; seriam capazes de arriscar a vida uns pelos outros e se conheciam tão bem, que sempre sabiam o próximo passo dos amigos, independente da situação. Às vezes essa “previsibilidade” era entediante...
No dia, curiosamente, apenas os primeiros anos tinham aulas à tarde. Quando qualquer vislumbre de luz vespertina se foi, a aula de Física acabou e os três amigos descobriram que não havia lua no céu, nem sequer a faísca de um brilho de estrela. Eram 18:00 e uma sombra amedrontadora tomou conta do Colégio Fantástico.
Por uma força até hoje inexplicável, todos os alunos e professores desapareceram. Apenas Júlia, João, Luiza, Matheus e a escuridão total restaram na escola. Júlia conhecera Matheus, rapidamente, numa lanchonete em março, mas para João e Luiza, ele não passava de um desconhecido estranhamente familiar.
Em situações de medo e escuridão, infelizmente, tendemos a confiar em pessoas desconhecidas e buscar desesperadamente a luz. Mal Júlia, João e Luiza sabiam que esse seria seu maior erro... Se os amigos soubessem que é apenas o desconhecido - por todos os males que sofremos e tememos, o mais traiçoeiro e que menos merece nossa atenção - que tememos quando olhamos para a escuridão; ele aparece de várias formas, inclusive inofensivas e prestativas, tudo teria sido mais fácil. Mas a imaginação deles tendia de tal forma a pensar no pior, que o desconhecido mostrou sua pior face.
Engolindo o medo, João vasculhou a área e concluiu que a energia havia sido cortada, os celulares estavam “fora de área” e todas as portas e janelas que possibilitariam uma saída do colégio estavam trancadas. “Ótimo”, pensou ironicamente, “vou dar as más notícias às meninas e Matheus”.
Quando concluiu essa medíocre linha de raciocínio, João podia jurar ter visto um vislumbre vermelho nos olhos de Matheus.
- Hum... - começou confuso, e tentando, acima de tudo, manter a calma, os pés no chão e ignorar os olhos do desconhecido, que ficavam cada vez mais vermelhos quando João parava de olhar diretamente para eles - Parece que estamos trancados numa jaula sem energia elétrica ou celulares.
- Já volto. – disse Matheus, enquanto o barulho de seus tênis indicava que ia para leste, a direção do laboratório de química e dos banheiros.
Não houve tempo para João comentar sobre os olhos de Matheus, as meninas falarem do medo sufocante do desconhecido, os três pegarem os celulares para iluminar o ambiente ou dizerem da estranha familiaridade de Matheus - coerente para Júlia e talvez para João e Luiza, considerando que já deviam ter visto Matheus alguma vez no Colégio Fantástico.
Súbito, luzes, vultos pálidos e distantes, que estavam e não estavam lá, assim como os olhos vermelhos de Matheus, começaram a se aproximar dos amigos. Com o passar dos segundos, os vultos foram tomando mais forma.
Os vultos se tornaram pessoas “sólidas”, aparentemente tocáveis. A cada passo que davam, o pavor tomava mais conta do coração dos amigos. Abatidas, pálidas, jovens e estranhamente familiares. O número de pessoas parecia aumentar e, quando se deram conta, havia uma multidão paralela caminhando aleatoriamente por toda escola.
Os amigos ficaram felizes ao perceber que eram pessoas conhecidas - todos os alunos e professores daquele gigantesco colégio - mas a onda de conforto durou pouco. Quando olharam novamente, João, Luiza e Júlia perceberam que havia um talho de 20 centímetros, exposto em carne viva no braço de uma garota do 3º colegial. Seu olhar era quase indiferente, ela parecia não sentir a dor fulminante que tomaria conta do braço de qualquer mortal. Os amigos diriam que era indiferente porque estava acostumada ou porque o ferimento tinha cicatrizado, se não fosse pelo fato de que o talho ainda estava sangrando, como se alguém tivesse reaberto ou feito o talho há alguns instantes.
Olharam novamente para o local, mas não diretamente para a garota. A colega andava na direção deles... E agora? Teria ela se cortado, propositalmente ou não, desejando fazer o mesmo com Júlia, Luiza e João? O que seria uma faca nas mãos de uma vingativa?
Eles se deram conta que a garota, pálida, forte, de olheiras profundas e olhar indiferente conversava com um colega ao lado deles. Mas, agora, quando a miravam, direta ou indiretamente, eram recebidos com um olhar intimidador e raivoso de uma garota ferida.
Apavorados, saíram de perto da conhecida do 3º colegial e deram de cara com uma perna masculina na mesma situação peculiar. Ela pertencia ao Guilherme, mais pálido do que nunca, cuja única reação foi encará-los e continuar o trajeto, como se estivesse na rua. Desviaram o olhar e encararam o talho familiar, dessa vez cortando na diagonal as costas nuas de uma garota de cabelos vermelho-sangue e blusa frente-única preta.
Os ferimentos só iam piorando, e cada vez os três irmãos-amigos viam mais pessoas queridas gravemente machucadas. Eles queriam poder fazer algo para ajudá-las, mas se questionavam se realmente estavam lá. Aquele não era o ambiente familiar que eles conheciam, assim como não era mais uma escuridão total, uma vez que os “vultos-pessoas” pálidos eram enxergados. O desconhecido já havia escolhido sua face.
O auge do medo surgiu com uma garotinha de 7 anos. A pobre criatura era irreconhecível. Estava extremamente deformada e torturada.
No rosto, o queixo estava deformado, com o maxilar inferior projetado para frente; as pálpebras extremamente caídas; os olhos, vermelhos; e a bochecha esquerda, com aquele pequeno talho familiar.
O braço direito fora amputado, estava exposto em carne viva e sangrava baldes. Havia pequenos cortes no outro braço e suas pernas - cobertas até o meio da coxa por um vestido florido manchado de sangue - tinham vários talhos grandes e profundos, expostos em carne viva que sangravam - era o tipo de ferida que atordoava os três amigos e a sina de várias pessoas naquela cena perturbadora. Por quê?
As orelhas da criaturinha estavam queimadas. Talvez ela fosse surda. As áreas do seu corpinho que ainda tinham pele original estavam vermelhas ou com manchas-roxas. Seus cabelos eram negros. Um dia ela tivera olhos verdes, fora bonita e feliz. Ela mancava e era evidente que pouco tempo de vida lhe restava. A criatura chorava sangue e segurava uma faca enferrujada na mão esquerda.
Quando olharam ao redor, Júlia, João, Luiza e Matheus - que acabara de voltar de sei lá onde - perceberam que todos os alunos e professores do Colégio Fantástico formavam círculos macabros ao redor deles, liderado pela criança irreconhecível. Agora, todos tinham as roupas rasgadas, gastas e sujas, e algum tipo de ferimento grave no corpo. Olhando direta ou indiretamente para eles, não havia saída. O ambiente perturbador não era mais paralelo, a multidão realmente estava lá e encarava os quatro com um olhar raivoso.
- O que vocês querem da gente? - bradou Luiza, as lágrimas brotando de seus olhos.
- Ahh! Eles sabem falar, Adylva! - disse, ironicamente, o professor de música, Harrison, para a criança que chorava sangue.
Um aluno fez gestos surdo-mudos para Adylva, comprovando que ela era surda, mas ainda enxergava algo. A mesma respondeu com uma risadinha falhada.
- Diga! Acabe logo com essa tortura.
- Você ainda não viu o que é tortura, minha querida. - disse o professor.
- Por favor, não faça nada de mal aos meus amigos... Fiquem comigo e deixem eles livres. - interpôs Júlia.
- Não, Júlia! Eu fico no seu lugar. - respondeu João.
- Vamos resolver isso juntos, galera. - contrapôs Matheus.
- Júlia e João, vocês dariam suas vidas... - começou o professor.
- Sim! - disseram prontamente.
- Por um desconhecido? - Ele batucava uma marcha fúnebre com as unhas compridas na parede.
- Não! - responderam os três amigos prontamente.
- Apenas queremos que vocês aceitem se tornar um de nós. - disse apontando para a faca enferrujada que a criatura Adylva segurava frouxamente - Se vocês quatro aceitarem, deixaremos vocês irem embora.
- Se apenas um de nós aceitar...? - indagou João.
- O acordo valerá apenas para essa pessoa: ele não estará preso, de forma alguma, a essa noite.
- E se não aceitarmos? Vão nos cortar em pedacinhos? - perguntou Luiza, raivosa.
- Bom, se não aceitarem nunca, seremos obrigados a pegar um pouco do sangue de vocês, pra não sentir fome. E é claro que ocorrem imprevistos, acidentes com facas, descontroles, entre outros. De certa forma, sim, algum dia vocês virariam salsicha. - falou com um ar indiferente - Não perceberão, mas ficarão presos a este momento uma eternidade, se for preciso, até o dia em que aceitarem ou implorarem (chame como quiser) para se tornar um de nós. Vocês passarão por situações pavorosas, todas as noites, até lá.
- Eu aceito a condição, contanto que eu saia vivo daqui. - disse Matheus.
- Não podemos garantir isso...
- Se for pra eu morrer esquartejado, hoje ou amanhã, prefiro que seja hoje a esperar uma data desconhecida.
Matheus mal terminou a última palavra de seu pequeno discurso, para transmitir um grito de dor e agonia. Com exceção dos três amigos, todos se posicionavam indiferentes à situação. Adylva tinha avançado com a faca enferrujada para o braço de Matheus, deixando um profundo talho familiar.
Quando a primeira gota de seu sangue manchou o chão, os círculos se desfizeram, os estranhos familiares desapareceram. As luzes acenderam e o céu apresentou um crepúsculo com tons avermelhados. - Será que o tempo não tinha passado? - As portas se destrancaram, assim como as janelas. Os celulares emitiram quatro sons distintos: eles não estavam mais fora de área.
Júlia, João, Luiza e Matheus não se deram ao trabalho de pegar o material escolar, saíram correndo do Colégio Fantástico e foram para uma lanchonete não muito longe, que ficava aberta 24 horas.
Luiza, João e Matheus foram os primeiros a entrar no local pouco conhecido. Júlia parou para amarrar o cadarço do tênis. Quando entrou, percebeu que dezenas de olhos avermelhados que estavam e não estavam lá a encaravam, exceto por Matheus, que olhava descontraído o cardápio. Era a lanchonete onde ela e Matheus tinham se conhecido no mês passado. Júlia não avistou João ou Luiza.
Ela se sentou junto ao amigo:
- Estava amarrando o meu tênis... Nossa que coisa mais estranha aconteceu hoje, hein? Eu achei que aquele bando de mortos-vivos ia me amarrar ao pé da mesa. - disse procurando João e Luiza com os olhos.
Matheus abaixou o cardápio e encarou Júlia.
- Me desculpe, mas... Eu te conheço?

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Sobre Coisas Fantásticas - por Pryscilla Mattos

Ontem estava pensando no futuro, não no que quero ser ou ter daqui a 10 anos e sim em como será a vida dos meus filhos. Será que não vai ter carrinhos de rolimã, brincadeiras de casinha, pique-pega, pique-esconde, pique-bandeirinha, nem piquenique? Eu não vejo as crianças do meu condomínio falando do monstro do banheiro da escola, e sim trocando “chiaters” de jogos on-line e, na maioria das vezes, isso nem é feito com todo mundo sentado na calçada e sim por telefone.
Não vejo mais as crianças chamando os avós de senhor ou senhora. Nessa nova ordem que se forma, é difícil ver algum jovenzinho tratando com carinho e educação até mesmo os pais. Isso não é nenhum hormônio na comida, é uma nova tendência: a do individualismo acima de tudo. Alguns pais têm aquela brilhante ideia, dar tudo o que não tiveram quando crianças: roupas, brinquedos, pequenos luxos... mas acabam esquecendo de passar adiante aquilo que lhes foi abundante na infância: carinho, limites, atenção, tempo.
Tempo! Isso talvez seja o mais complicado. Como uma mãe moderna faz para sair do trabalho e resolver uma briguinha de escola? Se ela não for a Mulher Maravilha, esse tipo de coisa fica em segundo plano. Outra situação: birra acompanhada da clássica frase “Eu quero!”, se gasta muito mais tempo tentando explicar porque não do que passando no caixa e efetuando a compra, por isso, na maioria dos casos, os pais optam pela segunda alternativa.As próprias crianças também não têm tempo como tínhamos há poucos anos atrás. São pequenos executivos com horários apertados, sendo treinados para um mercado de trabalho competitivo. Escolas em tempo integral! Computador e televisão para preencher os horários sem cursinhos...
Com essa fórmula, o resultado não poderia ser diferente. É batata! As crianças de hoje se tornaram monstrinhos consumistas e individualistas.
Fico sim saudosa dos meus anos de “pestinha”, em que eu subia nas árvores e ficava a tarde toda na rua sem nenhuma preocupação. Ninguém morria por não ter celular e brincávamos na rua sem medo nenhum de sequestros relâmpagos. Era raro sair para ver um filme no cinema e comer fast foods, mesmo por que tinha sessão da tarde e as mães faziam pipoca. Íamos sempre a parques, ao zoológico, brincar com os primos e todo mundo se divertia. Ninguém tinha Orkut, mas não perdíamos o contato com os amigos.

Depois de todas essas divagações, fiquei pensando nos pestinhas adoráveis que virão, imaginando como serão meus filhos... Não quero que sejam pequenos gênios, ou que saibam falar quatro idiomas, nem que estejam preparados para o vestibular com 13 anos de idade. Eu quero ter filhos felizes. Também quero aproveitar a infância deles, jogar ludo e adedanha, almoçar junto, acompanhar a realização das lições, ouvir as novidades da escola e tudo o mais. Na verdade eu nem sei se vou ter filhos, mas se tiver, não quero ensinar apenas a competir, quero ensinar como dividir, respeitar o próximo e, acima de tudo, amar o mundo que existe fora deste universo interior do próprio eu.
Companheirismo, solidariedade, altruísmo, amor, respeito, carinho e outra porção de palavras simplesmente maravilhosas não podem sair do dicionário. Cabe a nós não deixar o que elas representam morrer e passar tudo isso para nossa prole.

Sei que só tenho 21 anos, mas há 12 anos atrás infância ainda era “infância”! Beijo na boca, era um absurdo antes dos 11 anos, agora tem meninas de 10 anos sentindo a dor do parto!!!...
Vamos voltar todos à infância!!!




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Há Histórias Fantásticas - por Raul Alberto Cordeiro

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Adormeci hoje a pensar que acordava daqui a uns anos
Num apeadeiro nas crateras da Lua
Onde das estrelas caíam palavras
Que faziam um texto de uma frase nua
Onde, no Mar da Tranquilidade
As pessoas perdiam a idade
Onde não se criavam raízes
E podiam ser eternamente felizes
Onde por entre naves espaciais
Voavam borboletas e flores magistrais
Pássaros Fénix imortais
E aí esperava por ti
Da tua carreira regular de Vênus
Com escala breve por aqui
Fato espacial branco cru
Por cima de um corpo nu
Olhaste e vieste a mim
Onde os semáforos espaciais eram folhas de plátano
Que só mudavam de cor nas estações siderais
Onde o tempo era imponderável
Mas o solo pouco arável
E por isso as flores cresciam no ar sem ar
E não podiam parar a idade
Nem a força da gravidade
Foste breve no olhar mas lenta no respirar
Rarefeito o ar e o teu escutar
Tinhas pressa do espaço e da sua arte
Das velocidades de anos-luz
Dos cruzamentos com Marte
De um voo espacial nocturno
Com passagem por Saturno
Pressa a amores sempre fiéis
De tocares os seus anéis
Agora de saída após a tua partida
Contemplo essa bola azul
De senhora e eterna idade
Onde tudo é terreno e destino
Onde podia tocar-te sem esse fato espacial
Sem que levasses a mal
Onde a gravidade nos agarra à terra
Onde podemos ser pensamento
Mesmo triste
Mas onde a vida existe
É só ela mesmo responde
Quando a Lua se esconde



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Contado - por S. Ribeiro

Dele, o olhar desviado no ônibus que nunca cessa sem perguntas (oh!) e sem lógicas desta realidade que pelo silêncio, com certeza, é irreal.
Dele, me afasto sozinho como em um instinto, mas o limiar do que estamos agora é um destino, que fantasticamente (!) não lhe permite pular em cima de mim, e arrancar-me as uvas e as meias e os botões (!). Eu e meus êxtases fantasiosos... o mundo que não me enxerga com óculos de proteção sabe estes êxtases fantasmagóricos.
Dele, no outro lado do corredor, dele, pra onde recuso curvar o pescoço, dele, que não me chama e imprecisa as narrativas convencionais que nos servem tanto a imaginar uma história confortável e excelente; dele onde escapa meu desejo,
nele,
estocarei meu corpo das chuvas daqui de São Luís, e quando chegar em casa, entenderei (como se entende café amargo) quantos devaneios são necessários a estofar uma viagem.



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Nascido de Novo - por Saulo Rosa

Tudo corria bem na minha vida quando passei a apresentar problemas de digestão. Eu sempre fui de comer muito bem e nenhuma comida me parecia pesada. Na época em que essa história começou, eu estava com cinquenta e três anos, trabalhava com vendas, numa empresa grande onde já exercia a função de gerente há mais de dez anos, com bastante sucesso, o que era importante pra mim. A minha vida pessoal estava estabilizada e eu era feliz.
Sem qualquer causa aparente, passei a ter problemas com todo tipo de comida mais gordurosa. A princípio não liguei e fui usando chás que me recomendavam. Mas como não surtiram muito efeito e os sintomas se agravaram, com vômitos e dores abdominais, resolvi ir ao médico.
A minha família notou que eu estava emagrecendo e eu de fato estava e sentia também um certo desânimo. Assim, sem ter outra alternativa, aceitei me submeter ao escrutínio dos médicos que, nessa altura, já eram vários. Depois de quase dois meses de investigação e estando bem pior de tudo, veio a confirmação após uma cirurgia com biópsia: eu estava com câncer no pâncreas.
Depois de toda a desolação que este diagnóstico provoca, insisti com os médicos que eu queria saber de tudo com todos os detalhes e desejava participar das escolhas de tratamento e saber direitinho quais eram as chances e quanto tempo teria de vida.
Foi pior ainda porque nesse tipo de tumor as notícias não eram muito alentadoras. Segundo me afirmaram os médicos, eu deveria ter só mais um ano de vida, mesmo com a quimioterapia. A imagem do tumor na tomografia era feia e na cirurgia não puderam ressecar a lesão e fizeram a biópsia só pra confirmar que era maligna e poderem fazer a quimioterapia.
Pois bem, concluí que se eu seguisse esse tratamento, teria pouco tempo de vida e uma droga de vida dentro de hospital e tomando veneno. Mas todas as pessoas da família e amigos queriam me apoiar e ajudar a seguir o tratamento que para eles era a única forma sensata de lidar com algo assim tão grave.
Apesar de fisicamente eu estar um quase lixo, de ter parado a minha vida completamente, deixado de trabalhar e fazer qualquer coisa que fosse prazerosa, no fundo de mim mesmo eu sabia que havia uma saída. Só que não era aquela.
Quando consegui deixar o hospital, sem ter feito ainda qualquer tratamento efetivo, resolvi me acalmar e esperar até que viesse ao meu encontro alguma solução. Eu não rezava pra me salvar nem pensava em pesquisar nada de novo em relação a um possível tratamento para o meu caso.
Passados exatos três dias depois de minha volta para casa, acordei com uma palavra martelando na minha cabeça. Não sabia o que significava, mas ela permaneceu por várias horas me indicando que deveria pesquisar o que estava querendo me dizer. Depois de uma busca exaustiva na Internet cheguei a um Xamã que trabalhava no norte do Brasil. Fazia curas espantosas e não cobrava pelo trabalho. Nunca tinha tido conhecimento dessas coisas nem desse índio e seu nome me chegou como inspiração. Sabia então que caminho deveria seguir e confiei.
Viajei até lá sozinho, enfrentando todas as recriminações da família e dos amigos que quase me impediram de partir pela preocupação com meu estado. No entanto, eu sentia que precisava estar sozinho nesse momento, que essa seria a minha força e que eu contaria com todo o apoio que precisasse de uma outra esfera que não aquela material com a qual eu estava tão familiarizado.
O contato com o Xamã foi de apenas algumas horas. Eu não precisei dizer nada. Esperei por alguns minutos sentado no chão dentro de uma tenda, rodeado por grandes pedras que me transmitiam um enorme calor. Suei muito e quando ele entrou, não pude enxergá-lo com nitidez porque estava escuro dentro da tenda. Pediu que me deitasse com uma voz firme e ao mesmo tempo tranquilizante, falando muito pouco num português comum. Suas mãos tocaram minha barriga com firmeza e cuidado e percebi que mexia profundamente no meu corpo, mas eu não sentia dor. Estava acordado e senti que ele retirou da minha barriga algo que tinha volume depois de fazer com os dedos movimentos precisos. Retirou-se e fiquei sozinho, com uma sensação estranha e ao mesmo tempo muito calmo e começando a ter sonolência. Não sei o que se passou depois que ele saiu. Dormi e quando acordei as pedras estavam lá e não havia mais o calor abrasador. Tudo estava silencioso do lado de fora. Eu me sentia bem. Resolvi levantar e sair. Encontrei o Xamã perto dali, sentado, tendo à sua volta crianças pequenas que o escutavam enquanto falava. Veio ao meu encontro. Disse-me que eu estava curado, que deveria voltar para casa só depois de ficar por um dia em repouso e silêncio, sem comer nada, podendo beber líquidos mornos em pequena quantidade. Falou que o que causou a minha doença tinha sido retirado e que eu ficaria muito bem. Fui tomado de grande emoção enquanto ele me parecia sereno e seus olhos me acalmavam. Nada mais perguntei. Fui embora dali como hipnotizado e nunca me esqueci da sua imagem e de tudo que vivi naquele dia.
Voltei para casa na noite do dia seguinte. Sentia-me muito bem. A minha família ficou aliviada ao me ver de volta. Não me estendi no relato da viagem e do tratamento que fiz. Precisava descansar. Ninguém parecia compreender o meu estado. Eu me sentia em paz e muito voltado para mim mesmo, como nunca tinha estado antes. Os dias se passaram e eu fui ficando cada vez melhor. Voltei a me alimentar aos poucos e já não tinha qualquer incômodo. As pessoas não entendiam como aquilo estava acontecendo. O tempo passou, fui aos poucos me recuperando, ganhando peso. Voltei a trabalhar. Voltei a ter a vida normal que sempre tive, sem que todos que acompanharam de perto o meu caso pudessem acreditar que eu estava curado. Não liguei, eu sabia que estava.
Depois de um ano de muita insistência das pessoas que me amavam, voltei aos médicos que não conseguiram explicar a minha evolução. Falaram em cura espontânea, mas insistiram em me investigar. Eu estava muito bem e permiti que fossem feitos novos exames. Para o espanto dos médicos não havia qualquer vestígio da doença e isto nunca acontecia em casos como o meu, com o diagnóstico comprovado de câncer do pâncreas e no grau de comprometimento que tinha já alcançado.
Eu estava curado realmente. E continuo em perfeita saúde até hoje quando já se passaram sete anos.
Compreendi depois de todo esse tempo que eu tive a minha chance, que pude percebê-la e aproveitá-la. Para isso percebi os sinais, me entreguei e segui o caminho que a vida me apontava. E mais que tudo isso, fui capaz de a partir desse acontecimento, mudar a perspectiva de enxergar a vida, o que representou de fato a verdadeira cura.
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Asas - por Clarice A.

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A imaginação presa numa torre de imensa altura. Claustrofóbica, esmagada pela dura realidade que a aprisiona. Como fora parar ali?
Quer a liberdade. Nos contos de fada sempre tudo se resolve bem. Espera por um príncipe? Tivesse um sapo por ali, ela até o beijaria, quem sabe ele não se transformaria no tal príncipe tão esperado? Mas qual, nenhum sapo à vista. Olha para baixo e a altura é incompatível com o tempo de espera pelo crescimento dos cabelos tal qual Rapunzel e, sozinha, quem faria as quilométricas tranças?
Sabe da falta que faz, tem que achar um jeito de sair dali.
Viver sem imaginação? Inimaginável.
Está nas alturas, quem sabe um pássaro possa tirá-la dali? Eles têm asas e podem voar. ASAS? Sim, asas. Como não pensou nisso antes? Quantas vezes ouviu a frase: dê asas à sua imaginação? Como pôde esquecer-se disso? Ela tem asas.
Olha para baixo e a altura a intimida, o que vê a assusta demais. Olha para o horizonte, longínquo, cheio de promessas, o que vê a fascina demais.
Sobe no parapeito da única janela da torre de seu confinamento e uma dúvida a assalta: e se for apenas “força de expressão” que ela tem asas? O medo, um dos culpados do seu aprisionamento se fazendo presente. Teme porque sabe que sua morte seria o fim de tudo.
Espanta o medo, se não pular nunca saberá, de sua prisão só ela pode se libertar. Olha para cima - olhar para baixo a apavora - e lança-se ao espaço. Incrivelmente não sente sensação de queda nem por um segundo. Paira no ar e desloca-se para frente, para trás, para os lados, para cima ou para baixo, para onde quiser.
Enfim liberta!
Prisioneira por tanto tempo, agora se expandirá como nunca. As possibilidades? Infinitas.
Fantasias, quimeras, coisas fantásticas, incríveis e invulgares, utopias, criações absurdas, projetos extraordinários, tudo relacionado a ela, à imaginação.
Livre para voar. Benditas asas.
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