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domingo, 10 de outubro de 2010

Exumação e Transmutação da Dor - por Alba Vieira

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Pintura “Reino de Hades”, de Alba Vieira.
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Tudo se resume e termina numa pequena caixa. Uma caixa simples que guarda o sagrado. O tesouro que foi a estrutura de uma vida. A perfeição para sempre guardada, até que mesmo ela seja destruída pelo tempo e se transforme em pó.
Mas há algo além da caixa. Algo que jamais se extingue. Que é luz e se expande e evolui. A essência que sobrevive ao tempo, uma vez que não segue suas leis. A essência que concentra os perfumes de todas as existências. E, se chega perto dos bem-aventurados, inunda de perfume doce e suave, inconfundível para aqueles que estão ligados pelos laços do amor.
Parece contraditório que o homem se reduza com a morte, que esta simbolize perda e destruição. Muitos procuram defender-se negando seus rituais, afastando-se das práticas a ela relacionadas. Entretanto, para olhos que perscrutam, tudo é sublime e traz elevação.
Para aqueles que enterram seus mortos, o funeral se justifica quando o corpo é exposto para que seja testemunha da finitude da vida, da igualdade entre todos os homens quando chega o derradeiro sopro de vida. Depois, o corpo na urna é resguardado dos olhos que sem isso, assistiriam à sua decomposição, uma vez que a matéria é perecível. Assim protegido, o corpo, sagrado para aqueles que o amaram, é cuidado, vestido, enfeitado e lacrado para que possa descer à profundidade da terra que o acolhe e colabora com a ação do tempo.
Então, no processo de decomposição que segue nos próximos anos, as emoções se acomodam e família e amigos aceitam sua ausência, enquanto tentam e por fim conseguem simbolizá-lo no fundo de seus corações.
Mas, como existe por parte dos homens, de muitos dos homens, alguma resistência em aceitar a morte como natural, vem a necessidade de desenterrar aquele corpo para que, em seu lugar, outro possa ser acolhido, dando início ao mesmo processo.
E dizem alguns que a exumação é algo horroroso, indigno dos olhos que amaram aquele que se foi. Mas, de fato não é. É sim mais uma oportunidade de enxergar além das evidências e melhor aceitar a verdade suprema e reverenciar a lei da natureza.
Assim, quando pessoas comuns realizam este ritual sagrado, mexendo num corpo que não conheceram, na pessoa que não amaram, permitem que entendamos que somos todos iguais, todos irmãos, que devemos amar ao próximo sem que para isso existam laços de família ou amizade.
E quando aquelas mãos retiram os restos do caixão destruído pela ação da terra, os coveiros comportam-se como garimpeiros que buscam o ouro, os ossos daquele que nos é tão caro. E procuram e separam da terra e dos despojos todos os ossos, longos e pequeninos, que juntos compuseram a estrutura daquele ser e que agora, separados como numa caixa que contém um quebra-cabeças, simbolizam o que restou da pessoa amada.
E reúnem os ossos de forma tão respeitosa, lavam e limpam com as próprias mãos o que de mais profundo existia naquele ser material. E os ossos são guardados na caixa, uma pequena caixa que contém a grandiosidade daquele que para nós era tudo.
Não existe nada de feio, nada de deplorável. É a lei da vida. É a vontade de ter ainda perto o objeto do nosso amor.
E quando valorizamos aqueles que o destino escolheu para participar do nosso ritual sagrado, estamos mais perto de entender a transitoriedade de todas as coisas e o consolo que existe nisso.
E então depositamos esta pequena urna num nicho que protegerá aquele tesouro a que renderemos nossas homenagens até que possamos exercitar o desapego e transferir para a essência luminosa o nosso amor.
Isto acalma os corações que amam e que se permitem acompanhar até o fim a trajetória dos que lhe são caros até que num outro plano haja um reencontro tão esperado, coroado pela paz que enfim se estabelece.
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