Neste Dia dos Pais indico para esta categoria uma das crônicas inesquecíveis do Bruno: verdadeira, emocionante, bastante sensível e linda. Parabéns, Bruno, pela crônica. Feliz Dia dos Pais para todos e parabéns a todos os pais do Duelos.
AS ESPORAS DA CAMINHADA DE MEU PAI
(BRUNO D’ALMEIDA)
Era a primeira vez que podia ver meu pai consciente na UTI do hospital. Depois de dezessete dias de agonia, um enfarte agudo no miocárdio na mesa de cirurgia, duas safenas, uma mamária, erro médico que causou ruptura de pontos, nova incisão, nova cirurgia, coma induzido, infecção hospitalar com salmonela, rezas, choros, noites sem dormir, brigas com a direção do hospital, desunião, união, esperança, eis que Deus (ainda bem que ele perdoou meus xingamentos) cria um novo “para sempre enquanto dure” ao humor de José Fernando.
Ao entrar, a enfermeira me diz que o velho se levantou do leito, de madrugada, e disse quase inaudível que iria em casa rapidinho, apontando pra janela, que ninguém se preocupasse, falou ele arrancando todos os drenos e artefatos no seu corpo. Causou o maior rebuliço e teve que dormir depois de um remedinho básico que deixa a boca mole e o juízo relaxado. Olhando de soslaio, meu pai logo virou o rosto. Olhou para a enfermeira, fez sinal alisando os cabelos com as mãos. Ele queria um pente.
Só naquele momento me dei conta que meu pai não era um paciente internado, um homem que quase morreu nas mãos de uma médica autista. Ele não era um número de prontuário nem um apito na maquininha que media todos os dados do seu corpo. Ele era um homem. E queria ser visto como homem e não como um pobre coitado. Deslizando suavemente o pente entre os poucos cabelos grisalhos, pela primeira vez vovô Zé me ofereceu um sorriso aberto e cheio de vontade, aquele mesmo que todo mundo diz que eu tenho e todo mundo sabe de quem puxei.
Um sorriso. Diante de todo torpor, apenas um sorriso. A beleza da vida se resumiu a um sorriso. Ele não podia falar direito, tinha uma voz raquítica ainda por conta de uma sonda de respiração mecânica recém-tirada devido à infecção pulmonar. E ele ajeitava a roupa e aos poucos apontava pras inúmeras cicatrizes no seu corpo para incisões de procedimentos cirúrgicos e entrada e saída de medicamentos. Ele contava suas marcas como quem exibia troféus. Troféus da existência. Afinal, o que somos nós além de esporas de caminhadas árduas e coisas marcantes na vida para celebrar?
Meu pai melhorava a passos firmes. Ninguém tinha visto uma luta tão bem travada pela vida, um homem que suportou a tudo e estava ali devidamente recauchutado. E ele, já falando baixinho, ria das vezes em que achava haver uma conspiração internacional para assassiná-lo, que duvidava de tudo e de todos, que queria fugir do hospital. Teve que ser induzido ao coma para não atrapalhar a própria recuperação. Ele formalmente não sabia ainda do erro médico, mas acredito que não era bobo nem nada para perceber que algo deu errado. Não o suficiente para o dia do seu juízo particular final.
Meu pai tem hoje uma saúde invejável, parece mais novo do que eu. Ele me deu uma estranha oportunidade de sorrir diante de qualquer desgraça. Cada vez que passo por um problema, como falta de fundos, sinusite ou o diabo, eu sorrio, eu acredito que da próxima vez vai dar tudo certo. Meu sorriso é minha fé. Naquele dia, ao me despedir de meu pai na visita, passei as mãos nos seus cabelos e lhe dei um beijo na testa. Sabe o que ele fez? Passou novamente o pente entre os cabelos. E, é claro, sorriu para mim.
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AS ESPORAS DA CAMINHADA DE MEU PAI
(BRUNO D’ALMEIDA)
Era a primeira vez que podia ver meu pai consciente na UTI do hospital. Depois de dezessete dias de agonia, um enfarte agudo no miocárdio na mesa de cirurgia, duas safenas, uma mamária, erro médico que causou ruptura de pontos, nova incisão, nova cirurgia, coma induzido, infecção hospitalar com salmonela, rezas, choros, noites sem dormir, brigas com a direção do hospital, desunião, união, esperança, eis que Deus (ainda bem que ele perdoou meus xingamentos) cria um novo “para sempre enquanto dure” ao humor de José Fernando.
Ao entrar, a enfermeira me diz que o velho se levantou do leito, de madrugada, e disse quase inaudível que iria em casa rapidinho, apontando pra janela, que ninguém se preocupasse, falou ele arrancando todos os drenos e artefatos no seu corpo. Causou o maior rebuliço e teve que dormir depois de um remedinho básico que deixa a boca mole e o juízo relaxado. Olhando de soslaio, meu pai logo virou o rosto. Olhou para a enfermeira, fez sinal alisando os cabelos com as mãos. Ele queria um pente.
Só naquele momento me dei conta que meu pai não era um paciente internado, um homem que quase morreu nas mãos de uma médica autista. Ele não era um número de prontuário nem um apito na maquininha que media todos os dados do seu corpo. Ele era um homem. E queria ser visto como homem e não como um pobre coitado. Deslizando suavemente o pente entre os poucos cabelos grisalhos, pela primeira vez vovô Zé me ofereceu um sorriso aberto e cheio de vontade, aquele mesmo que todo mundo diz que eu tenho e todo mundo sabe de quem puxei.
Um sorriso. Diante de todo torpor, apenas um sorriso. A beleza da vida se resumiu a um sorriso. Ele não podia falar direito, tinha uma voz raquítica ainda por conta de uma sonda de respiração mecânica recém-tirada devido à infecção pulmonar. E ele ajeitava a roupa e aos poucos apontava pras inúmeras cicatrizes no seu corpo para incisões de procedimentos cirúrgicos e entrada e saída de medicamentos. Ele contava suas marcas como quem exibia troféus. Troféus da existência. Afinal, o que somos nós além de esporas de caminhadas árduas e coisas marcantes na vida para celebrar?
Meu pai melhorava a passos firmes. Ninguém tinha visto uma luta tão bem travada pela vida, um homem que suportou a tudo e estava ali devidamente recauchutado. E ele, já falando baixinho, ria das vezes em que achava haver uma conspiração internacional para assassiná-lo, que duvidava de tudo e de todos, que queria fugir do hospital. Teve que ser induzido ao coma para não atrapalhar a própria recuperação. Ele formalmente não sabia ainda do erro médico, mas acredito que não era bobo nem nada para perceber que algo deu errado. Não o suficiente para o dia do seu juízo particular final.
Meu pai tem hoje uma saúde invejável, parece mais novo do que eu. Ele me deu uma estranha oportunidade de sorrir diante de qualquer desgraça. Cada vez que passo por um problema, como falta de fundos, sinusite ou o diabo, eu sorrio, eu acredito que da próxima vez vai dar tudo certo. Meu sorriso é minha fé. Naquele dia, ao me despedir de meu pai na visita, passei as mãos nos seus cabelos e lhe dei um beijo na testa. Sabe o que ele fez? Passou novamente o pente entre os cabelos. E, é claro, sorriu para mim.
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2 comentários:
Adorei a forma poética de falar sobre o amor, sobre o pai, sobre a vida e sobre a saúde neste Brasil.
Amei a lição de vida que voce conseguiu tirar num minuto entre o pentear e o sorrir
Parabens.
Ana Guimaraes ferreira
Muito linda mesmo, né, Ana?
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