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domingo, 1 de março de 2009

Eu Não Sei Se a Manhã Chegou - por Bruno D’Almeida

Eu não sei se a manhã chegou. Apenas vejo as matizes de azul claro na janela, mas não sei se já é dia. O dia aconteceu lá fora, mas não dentro de mim. Quem sabe algum estalo, algum acontecimento fantástico, como um pára-quedas, um pára-raio, um para-quê, um não sei o quê, algo ainda pode acontecer para o dia amanhecer. Que venha o dia, e adormeça minhas plaquinhas fotoelétricas de nostalgia.

Nem o carro que passa dilacerando o vento, nem a moça parada esperando o ônibus, nem o cachorro com o focinho enterrado no lixo. Nem mesmo aquela folha rodopiando pensamentos num moinho de vento é capaz de dizer que o dia chegou. O dia não nasce dos acontecimentos. Ele espera um sinal de alimento, um copo de leite da alma, pedaços de pão no meio do caminho. Pegadas, trilhas, sentimentos imperfeitos.

O dia não chegou. A presença de mim não significa que estou aqui. Talvez eu esteja mesmo no quintal de alguma casa, deitado no chão de qualquer praça, esperando como louco uma praga, um sinal de graça, uma alegria que faça esse corpo ocioso e milimetricamente exaurido flutuar, arrastando os pés no vento, ao relento, em qualquer rebento. Eu quero ver o mundo lá das alturas. Eu quero ver o dia chegar.

Mas é quase repetitivo, o dia não dá sinal de passagem nem troco pelo ingresso adquirido. Não dá o melhor lugar na arquibancada, nem chega o último lance da escada, não ultrapassa o ventilador da sala, o dia ainda é nada. Às vezes o dia é assim, nada. Eu quero meu dia de volta, mas o revendedor autorizado insiste em dizer que não há troca para mercadoria vencida. Meu dia está quebrado e não há garantia que valha uma nova metáfora.

Acordo sobressaltado. Não sei ao certo se estou dormindo acordado, ou numa lucidez sonolenta o tempo se tornou estático. Nem o telefone que toca um som estridente, nem a barata que passa na minha frente, tudo está orbitalmente parado. Nem o barulho ensurdecedor do liquidificador ao lado, nem o forçar de abrir e fechar das minhas pálpebras cansadas. O dia chegou parado, no movimento das coisas, nas pegadas de formiga no açucareiro.

Só há uma forma do dia acontecer. Que venha o porvir, que brote a árvore dos meus anseios. Que faça chuva e sol no clima árido dos meus sentimentos. Que o carteiro deixe embaixo da porta as palavras que espero há anos, há alguns instantes de firmamento. Eu quero o dia das realizações grandiosas, de acordar e saber que lá fora vai estar tocando The time is by my side, que aqui dentro vão estar pulsando cores claras, vivas e reais. Eu vou fazer delas a colcha de retalhos mais psicodélica que já se ouviu falar.

Quando esse dia chegar, eu vou ter a sensação de que o tempo não parou e o dia veio junto com ele. Embrulhado num papel amarelado, de dizeres quase apagados, uma mensagem que veio da porta cibernética do tempo, que veio lá da frente, e aqui parou de repente, e em letras garrafais, uma mensagem eloquente: para você que sempre acreditou, aqui está, pode beliscar, não vai doer, o seu dia finalmente chegou. E eu sairei gritando pela rua coisas tão bonitas, tão acintosamente displicentes, que eu nem tenho coragem de descrever. Desculpe, mas esse momento guardarei lacrado e ninguém, nem mesmo você vai poder imaginar.



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4 comentários:

Anônimo disse...

Bruno:
O que dizer sobre suas crônicas? Acho que já usei todos os mais elogiosos elogios para descrevê-las e agradecê-las...
Então vou simplificar: adorei esta também.
Mas a do picolé está vencendo todas as outras que já li com corpos de vantagem. Principalmente quando li no seu blog, com aquela foto gracinha do macaquinho... Ficou especial!...

Anônimo disse...

Oi, Ana, eu sempre fico feliz com seus comentários!

A crônica tem dessas marés. Alguns temas permeiam meu imaginário: lembranças de acontecimentos fantásticos, escrevedores de cartas e situações adversas do cotidiano. Acho que estou mais numa fase de revelar uns personagens comuns que escrevem para si e para o mundo.

A crônica do picolé é uma dessas situações esdrúxulas do cotidiano, como a crônica da bicicletinha. No próximo domingo vem uma dessas, espero que goste!

Anônimo disse...

Bruno:
Pode sempre contar com meus comentários, com certeza!
Gostei muito da bicicletinha, principalmente da parte em que insistem com o menino, tentando convencê-lo.
Mas gostei mais da outra que envolve criança e dinheiro: a do shopping. Adorei!
Ass: Sua fã.

Anônimo disse...

Ana,

A crônica sobre criança e dinheiro aconteceu comigo de verdade. Imagine a situação? Pensei naquilo tudo mesmo. Coloquei os nomes do casal que deu a moedinha a meu filho como singela homenagem.