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domingo, 7 de julho de 2013

A Peste - por Jair Lopes


No princípio parecia apenas que um número maior de pessoas estava gripado, os acometidos por um possível vírus apresentavam sintomas iguais ou parecidos com os da gripe, como irritação na garganta, coriza, alguma obstrução nasal e, em alguns casos, uma febre leve.
Palmeira era uma cidade pequena e as ocorrências, fatos e eventos que lá se passavam eram de conhecimento de todos, como se pertencessem a uma grande família. Então, quando os casos de “gripe” começaram a levar gente ao único hospital do burgo em busca de tratamento, os dois médicos e as irmãs de caridade que atendiam os doentes perceberam que eles estavam mais prostrados do que se poderia esperar se estivessem apenas gripados. Toda a cidade tomou conhecimento que mais gente e com gravíssimos sintomas estavam baixando aos leitos hospitalares.
Mais ou menos no segundo mês depois que os primeiros casos apareceram quase um terço da população, inclusive um dos médicos, estava acometido dessa doença que passou a preocupar tanto as autoridades quando os cidadãos que ainda não tinham sido contaminados. Pelo que se sabia era uma doença virótica ou bacteriana contagiosa, porque era comum pessoas de uma mesma família ou que conviviam em ambientes confinados como salas de aula ou escritórios, apresentassem sintomas em cadeia. As primeiras mortes vieram logo a seguir, mortes horríveis com os doentes assumindo posições arqueadas, olhos esbugalhados, boca aberta e gritando como se o fogo do inferno os tivesse queimando, parecendo possuídos por demônios. Em um mês, mais da metade dos cidadãos já estavam doentes e os coveiros passaram a fazer horas extras para enterrar os mortos. Notadamente, a doença não escolhia classe social, idade ou sexo, ainda que os primeiros mortos tenham sido pessoas idosas e crianças muito novas.
O prefeito apressou-se em decretar estado de vigilância e decretou que escolas fossem fechadas, dispensou os funcionários públicos municipais e sugeriu que todos os serviços que não fossem essenciais deixassem de funcionar.
Muitos dos mais ricos arrumaram as malas e se mandaram para Curitiba ou outra cidade onde tivessem parentes ou amigos. Aos pobres coube apenas se trancar em casa tanto quanto possível, e rezar para que a doença não os alcançasse. Houve dois ou três casos nos quais todas as pessoas de uma mesma família confinada foram atacadas morreram e só se tomou conhecimento disso quando os corpos começaram a exalar mau cheiro.
O padre, alguns pastores, beatas e outros devotos faziam penitências, rezavam, oravam e pediam perdão por pecados nunca cometidos e por faltas nunca acontecidas. Apareceram três pregadores místicos que bradavam pelas ruas vazias dizendo que aquele era um castigo de Deus pelas iniquidades daquele povo incréu e pecaminoso. Se alguém acreditava nisso nada dizia, mas era aparente o medo e a desconfiança. Será que Deus estava castigando a todos por algo que alguns fizeram? Será que o Criador havia escolhido aquela cidade para servir de exemplo para uma humanidade pecadora, cruel e belicosa? Foi nesse clima que alguém ressuscitou a palavra PESTE. Para a crendice do povão ignaro palmeirense, peste significava muito mais que uma grave doença ocasional, ou mesmo um epidemia inesperada e fatal; peste significava algo determinado por uma força superior como punição; peste era penitência por pecados cometidos, e isso mexia com o imaginário daquelas pessoas simples. Então, a partir da lembrança da palavra, muitos passaram admitir que estavam sendo punidos com a peste. Por estranho que pareça, o fato de agora saberem o que era e qual a finalidade do mal, fez com que alguns se conformassem com o destino e, com humildade, admitissem que eram pecadores e deviam ser punidos.
Mas a peste continuou ampliando seu alcance e mortalidade, mais gente foi infectada e muitas mais morreram. Os cemitérios já não comportavam tantos defuntos e as autoridades liberam outros dois terrenos públicos para os sepultamentos, que agora se faziam até a noite. Calculava-se que um terço dos cidadãos havia falecido, outro terço estava doente e o terço final rezando e tremendo em suas casas. Dos que partiram, depois se soube, também um terço havia deixado de viver nessa mesma época.
Ainda que o apelo das autoridades médicas tivesse sensibilizado a Secretaria de Saúde do Estado, e esta tenha enviado uma equipe médica e um hospital de campanha cedido pelo Exército, os casos da doença misteriosa só aumentavam e o número de mortos também. Curiosamente, ninguém que tenha vindo para a cidade para trabalhar ou que por lá tenha passado adquiriu a doença. Parecia uma epidemia seletiva, só atacava os moradores de Palmeira. Mas, assim como havia começado seis meses antes sem trombetas ou foguetórios, saiu de cena de mansinho sem deixar saudades, acabou. Os últimos doentes sararam de um dia para outro e os que não haviam ficado doentes saíram de suas casas e perderam o medo. Palmeira, agora rarefeita de gente, começou lentamente e se recuperar da catástrofe, era uma cidade convalescente e com outro espírito, como fênix renascida, purificou-se.
O formoso burgo, que já era conhecido como Cidade Clima do Brasil, agora aguilhoado pela mórbida moléstia, podia ser chamado de Cidade Bem-aventurada do Brasil, a bondade, o denodo, o altruísmo, o bom mocismo, a benevolência, a filantropia, a caridade, a prodigalidade, a piedade, o brio, a consideração, a reflexão, a tolerância, a candidez, a moralidade, a nobreza de caráter, o pundonor, a gentileza, a compostura, a fineza, a probidade, o esmero, a maturidade, a sobriedade, o recato, o equilíbrio, a calma, a elegância no trato aos outros, a prudência e a lealdade passaram a ser a marca registrada dos habitantes daquela comunidade. Todos se tornaram mais felizes e passaram a contagiar de felicidade quem viesse morar na cidade.
Muitos anos depois, cronistas relataram que mais da metade da população havia perecido, dos que sobraram mais da metade mudou-se para sempre. Os que ficaram formaram uma pequena sociedade extremamente coesa, honesta e solidária, a mais exemplar do país a qual até hoje pode ser citada por suas realizações humanitárias. Palmeira é a melhor cidade do Brasil desde então.

 

Jair Lopes, Floripa, 16/09/11.

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