No princípio parecia apenas que um número maior de pessoas
estava gripado, os acometidos por um possível vírus apresentavam sintomas
iguais ou parecidos com os da gripe, como irritação na garganta, coriza, alguma
obstrução nasal e, em alguns casos, uma febre leve.
Palmeira era uma cidade pequena e as ocorrências, fatos e
eventos que lá se passavam eram de conhecimento de todos, como se pertencessem
a uma grande família. Então, quando os casos de “gripe” começaram a levar gente
ao único hospital do burgo em busca de tratamento, os dois médicos e as irmãs
de caridade que atendiam os doentes perceberam que eles estavam mais prostrados
do que se poderia esperar se estivessem apenas gripados. Toda a cidade tomou
conhecimento que mais gente e com gravíssimos sintomas estavam baixando aos
leitos hospitalares.
Mais ou menos no segundo mês depois que os primeiros casos
apareceram quase um terço da população, inclusive um dos médicos, estava
acometido dessa doença que passou a preocupar tanto as autoridades quando os
cidadãos que ainda não tinham sido contaminados. Pelo que se sabia era uma
doença virótica ou bacteriana contagiosa, porque era comum pessoas de uma mesma
família ou que conviviam em ambientes confinados como salas de aula ou
escritórios, apresentassem sintomas em cadeia. As primeiras mortes vieram logo
a seguir, mortes horríveis com os doentes assumindo posições arqueadas, olhos
esbugalhados, boca aberta e gritando como se o fogo do inferno os tivesse
queimando, parecendo possuídos por demônios. Em um mês, mais da metade dos
cidadãos já estavam doentes e os coveiros passaram a fazer horas extras para
enterrar os mortos. Notadamente, a doença não escolhia classe social, idade ou
sexo, ainda que os primeiros mortos tenham sido pessoas idosas e crianças muito
novas.
O prefeito apressou-se em decretar estado de vigilância e
decretou que escolas fossem fechadas, dispensou os funcionários públicos
municipais e sugeriu que todos os serviços que não fossem essenciais deixassem
de funcionar.
Muitos dos mais ricos arrumaram as malas e se mandaram para
Curitiba ou outra cidade onde tivessem parentes ou amigos. Aos pobres coube
apenas se trancar em casa tanto quanto possível, e rezar para que a doença não
os alcançasse. Houve dois ou três casos nos quais todas as pessoas de uma mesma
família confinada foram atacadas morreram e só se tomou conhecimento disso
quando os corpos começaram a exalar mau cheiro.
O padre, alguns pastores, beatas e outros devotos faziam
penitências, rezavam, oravam e pediam perdão por pecados nunca cometidos e por
faltas nunca acontecidas. Apareceram três pregadores místicos que bradavam
pelas ruas vazias dizendo que aquele era um castigo de Deus pelas iniquidades
daquele povo incréu e pecaminoso. Se alguém acreditava nisso nada dizia, mas
era aparente o medo e a desconfiança. Será que Deus estava castigando a todos
por algo que alguns fizeram? Será que o Criador havia escolhido aquela cidade
para servir de exemplo para uma humanidade pecadora, cruel e belicosa? Foi
nesse clima que alguém ressuscitou a palavra PESTE. Para a crendice do povão
ignaro palmeirense, peste
significava muito mais que uma grave doença ocasional, ou mesmo um epidemia
inesperada e fatal; peste significava algo determinado por uma força superior
como punição; peste era penitência por pecados cometidos, e isso mexia com o
imaginário daquelas pessoas simples. Então, a partir da lembrança da palavra,
muitos passaram admitir que estavam sendo punidos com a peste. Por estranho que
pareça, o fato de agora saberem o que era e qual a finalidade do mal, fez com
que alguns se conformassem com o destino e, com humildade, admitissem que eram
pecadores e deviam ser punidos.
Mas a peste continuou ampliando seu alcance e mortalidade,
mais gente foi infectada e muitas mais morreram. Os cemitérios já não
comportavam tantos defuntos e as autoridades liberam outros dois terrenos
públicos para os sepultamentos, que agora se faziam até a noite. Calculava-se
que um terço dos cidadãos havia falecido, outro terço estava doente e o terço
final rezando e tremendo em suas casas. Dos que partiram, depois se soube,
também um terço havia deixado de viver nessa mesma época.
Ainda que o apelo das autoridades médicas tivesse
sensibilizado a Secretaria de Saúde do Estado, e esta tenha enviado uma equipe
médica e um hospital de campanha cedido pelo Exército, os casos da doença
misteriosa só aumentavam e o número de mortos também. Curiosamente, ninguém que
tenha vindo para a cidade para trabalhar ou que por lá tenha passado adquiriu a
doença. Parecia uma epidemia seletiva, só atacava os moradores de Palmeira.
Mas, assim como havia começado seis meses antes sem trombetas ou foguetórios,
saiu de cena de mansinho sem deixar saudades, acabou. Os últimos doentes
sararam de um dia para outro e os que não haviam ficado doentes saíram de suas
casas e perderam o medo. Palmeira, agora rarefeita de gente, começou lentamente
e se recuperar da catástrofe, era uma cidade convalescente e com outro
espírito, como fênix renascida, purificou-se.
O formoso burgo, que já era conhecido como Cidade Clima do
Brasil, agora aguilhoado pela mórbida moléstia, podia ser chamado de Cidade
Bem-aventurada do Brasil, a bondade, o denodo, o altruísmo, o bom mocismo, a
benevolência, a filantropia, a caridade, a prodigalidade, a piedade, o brio, a
consideração, a reflexão, a tolerância, a candidez, a moralidade, a nobreza de
caráter, o pundonor, a gentileza, a compostura, a fineza, a probidade, o
esmero, a maturidade, a sobriedade, o recato, o equilíbrio, a calma, a
elegância no trato aos outros, a prudência e a lealdade passaram a ser a marca
registrada dos habitantes daquela comunidade. Todos se tornaram mais felizes e
passaram a contagiar de felicidade quem viesse morar na cidade.
Muitos anos depois, cronistas relataram que mais da metade
da população havia perecido, dos que sobraram mais da metade mudou-se para
sempre. Os que ficaram formaram uma pequena sociedade extremamente coesa,
honesta e solidária, a mais exemplar do país a qual até hoje pode ser citada
por suas realizações humanitárias. Palmeira é a melhor cidade do Brasil desde
então.
Jair Lopes, Floripa, 16/09/11.
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