Lentamente escorrego para fora da cama, meio trôpega ainda, meio cega, um tanto atônita, com o peito carregado ainda pelas emoções da noite que passou e me dirijo ao banheiro.
Ainda sem enxergar, molho as mãos na água fria e banho o rosto num movimento de acariciar a pele, acordando-a devagarzinho. Encho a boca de água, banho o nariz, os olhos e vou percebendo melhor o início do dia. Seco o rosto, as mãos e ando até a cozinha onde escancaro a janela e páro ao lado do filtro de barro.
É aqui que se inicia o ritual de uma meditação. Nesse momento, eu me confundo com a manhã e vou acordando como ela. Eu com a água, ela com o sol.
Olho para fora da janela e me deslumbro com o dia que ainda não é de todo. O céu ainda é chumbo. A cidade dorme. Olho por cima dos prédios. Estou bem no alto. Vejo a copa das árvores, os edifícios ao longe, a rua ainda deserta.
A janela aberta me permite ouvir o som de fora. Ainda não há os sons de costume, aqueles que ouvimos diariamente, a partir de certa hora: sons de buzinas, de motores de carros, ônibus, sons de correria, de loucura, de gritos que libertam por momentos curtos, almas imprensadas numa cidade já quase desumana.
Agora os sons são tranquilizadores. Escuto o vento, o farfalhar das folhas das árvores, algum tímido passarinho que já acordou, um cachorro sonolento que tenta dizer aos donos que já está de pé. E ouço os galos cantarem. Não sei bem onde ainda existem galos nessa cidade. Mas o fato é que eles me acompanham. Onde quer que eu vá sempre escuto um galo cantar na manhã, me trazendo a infância de volta todos os dias, a me lembrar que ainda sou quem sempre fui, que minha pureza e espontaneidade, minha emotividade estão guardadas em mim e, a qualquer instante, podem ser acordadas por esses galos do alvorecer.
Encho o primeiro copo de água, limpinha, fresca, do filtro de barro. Olho a água como se olhasse o mar. Chego a sentir o cheiro de maresia e o frescor da brisa que sopra perto do mar. É o primeiro copo dos seis que vou bebendo devagar todas as manhãs, inaugurando meu dia com esse contato silencioso com o mundo, um contato sem palavras, só de sensações, de captar com todos os cinco sentidos a vida que está em volta. Assim, vou me acordando e despertando outros sentidos. A água enche minha boca e escorre para dentro. Isso mexe com a respiração. Respiro o dia, resgato todos os dias o bebê que respira pela primeira vez, a descoberta do mundo. Escuto um passarinho, o som limpo. Vejo uma janela se abrindo, alguém se levanta e começa a viver o hoje.
Bebo outro copo e o fluxo das águas em mim me faz perceber um movimento do meu tubo digestivo, que vai acordando. Percebo barulhos internos enquanto olho o céu que agora já está sendo rasgado pelo sol. Já não é chumbo, já há claridade. Um sino soa ao longe. Bebo mais água. Alguns músculos se soltam nas costas. Os olhos estão mais abertos, já vejo com nitidez o mundo lá fora. Penso na noite de ontem. Sinto a felicidade de estar viva, de amar, de ter vindo até a janela com minhas próprias pernas. A água que molha meus tecidos e abastece meus órgãos, limpa as vísceras, traz renovação, me acorda, me purifica. Os pensamentos são claros. A cada copo que bebo sinto que me abro pra vida como a noite que vai-se afastando aos poucos, permitindo que o dia chegue com o sol. E o céu vai-se abrindo. Os passarinhos voam. Escuto o barulho do meu intestino espreguiçando lá dentro. Já estou no quinto copo. E quero mais água. Sinto as ondas chegando para mim, por dentro, mas é como se estivesse no mar. As ondas me cobrem, a água traz o fluxo da vida.
A cidade vai acordando, eu recebo mais esse dia, feliz por estar comigo, por me perceber inteira, por sentir que amo, que sou amada, que dormi bem, que continuei o sonho do fim da noite e vou levá-lo comigo no coração, nesse dia que já nasceu.
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Ainda sem enxergar, molho as mãos na água fria e banho o rosto num movimento de acariciar a pele, acordando-a devagarzinho. Encho a boca de água, banho o nariz, os olhos e vou percebendo melhor o início do dia. Seco o rosto, as mãos e ando até a cozinha onde escancaro a janela e páro ao lado do filtro de barro.
É aqui que se inicia o ritual de uma meditação. Nesse momento, eu me confundo com a manhã e vou acordando como ela. Eu com a água, ela com o sol.
Olho para fora da janela e me deslumbro com o dia que ainda não é de todo. O céu ainda é chumbo. A cidade dorme. Olho por cima dos prédios. Estou bem no alto. Vejo a copa das árvores, os edifícios ao longe, a rua ainda deserta.
A janela aberta me permite ouvir o som de fora. Ainda não há os sons de costume, aqueles que ouvimos diariamente, a partir de certa hora: sons de buzinas, de motores de carros, ônibus, sons de correria, de loucura, de gritos que libertam por momentos curtos, almas imprensadas numa cidade já quase desumana.
Agora os sons são tranquilizadores. Escuto o vento, o farfalhar das folhas das árvores, algum tímido passarinho que já acordou, um cachorro sonolento que tenta dizer aos donos que já está de pé. E ouço os galos cantarem. Não sei bem onde ainda existem galos nessa cidade. Mas o fato é que eles me acompanham. Onde quer que eu vá sempre escuto um galo cantar na manhã, me trazendo a infância de volta todos os dias, a me lembrar que ainda sou quem sempre fui, que minha pureza e espontaneidade, minha emotividade estão guardadas em mim e, a qualquer instante, podem ser acordadas por esses galos do alvorecer.
Encho o primeiro copo de água, limpinha, fresca, do filtro de barro. Olho a água como se olhasse o mar. Chego a sentir o cheiro de maresia e o frescor da brisa que sopra perto do mar. É o primeiro copo dos seis que vou bebendo devagar todas as manhãs, inaugurando meu dia com esse contato silencioso com o mundo, um contato sem palavras, só de sensações, de captar com todos os cinco sentidos a vida que está em volta. Assim, vou me acordando e despertando outros sentidos. A água enche minha boca e escorre para dentro. Isso mexe com a respiração. Respiro o dia, resgato todos os dias o bebê que respira pela primeira vez, a descoberta do mundo. Escuto um passarinho, o som limpo. Vejo uma janela se abrindo, alguém se levanta e começa a viver o hoje.
Bebo outro copo e o fluxo das águas em mim me faz perceber um movimento do meu tubo digestivo, que vai acordando. Percebo barulhos internos enquanto olho o céu que agora já está sendo rasgado pelo sol. Já não é chumbo, já há claridade. Um sino soa ao longe. Bebo mais água. Alguns músculos se soltam nas costas. Os olhos estão mais abertos, já vejo com nitidez o mundo lá fora. Penso na noite de ontem. Sinto a felicidade de estar viva, de amar, de ter vindo até a janela com minhas próprias pernas. A água que molha meus tecidos e abastece meus órgãos, limpa as vísceras, traz renovação, me acorda, me purifica. Os pensamentos são claros. A cada copo que bebo sinto que me abro pra vida como a noite que vai-se afastando aos poucos, permitindo que o dia chegue com o sol. E o céu vai-se abrindo. Os passarinhos voam. Escuto o barulho do meu intestino espreguiçando lá dentro. Já estou no quinto copo. E quero mais água. Sinto as ondas chegando para mim, por dentro, mas é como se estivesse no mar. As ondas me cobrem, a água traz o fluxo da vida.
A cidade vai acordando, eu recebo mais esse dia, feliz por estar comigo, por me perceber inteira, por sentir que amo, que sou amada, que dormi bem, que continuei o sonho do fim da noite e vou levá-lo comigo no coração, nesse dia que já nasceu.
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Visitem Alba Vieira
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Um comentário:
Alba:
Tirando os detalhes anatômicos típicos de médica virginiana, achei lindo o texto! Muito sensível, realmente!
Beijo!
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