Ana Amélia tinha uma grande missão naquele dia: desencaixotar a mudança de sua casa nova. A vida corrida a impedia de procurar pratos, toalhas, incensos, roupas, computador, até a geladeira se perdeu no meio da bagunça. Filosofava sobre o processo de entropia escovando os dentes com os dedos. Antes de sair correndo para o trabalho, olhou para o caos dentro do próprio caos e disse a si mesma: de hoje não passa. Uma casa desarrumada pode ser uma metáfora inevitável sobre a bagunça que podemos propor às nossas próprias vidas.
É necessário dizer que nossa bela protagonista tinha um fusca 1967 amarelo. Um mimo. E lá ia ela, anacrônica, com sua roupa indiana bordada vermelha, margarida nos cabelos e uma cesta de vime com fitinhas coloridas no carona, onde levava sua refeição vegetariana: bananas, barras de cereais e bolacha Maria. Ana Amélia é um daqueles personagens de um bom filme francês que resolveu existir de verdade, com toda sua insustentável verossimilhança. E era assim que ela ia fazendo seu trabalho de agente de uma editora de livros, de escola em escola, tirando dúvidas sobre o uso do material didático. Nem esperava ela, naquele dia, encontrar uma bagunça muito maior do que sua casa nova.
A cidade chovia de maneira torrencial. Seu fusquinha atolava em aguaceiros, não era apenas uma chuva, era um dilúvio. Todas as visitas tiveram que ser canceladas, ou pela falta de possibilidade de chegar ao local ou pela suspensão das aulas nas unidades escolares. E foi assim durante todo o dia, uma sucessão de desacertos que só encontrava refúgio na certeza de arrumar a bagunça de sua casa. Ela precisava encontrar urgentemente a caixa de meias e de roupas miúdas, estava cansada de comprar promoções de três pares de meias por nove e noventa em lojas de departamentos. Sem contar o sumiço do cabo de água da máquina de lavar que a impedia de deixar as roupas com cheiro de sabão Omo. Atolava o cartão de crédito com roupas novas.
Mas o dia não estava perdido, havia uma palestra de amigos para assistir de noite. A chuva deu trégua. E lá foi Amélia, aquela que desafiava o compositor Mário Lago e sabia ser mulher de verdade. Depois da grande dificuldade de estacionar nas ruas estreitas de Salvador, encontrou uma multidão em frente ao prédio da faculdade com várias negativas e caras de adeus. Queda de energia, aulas suspensas. Ouvia e, mais do que isso, via com seus olhos vivos de âmbar a tristeza da amiga comunicar o adiamento da palestra. O que mais faltava acontecer? Vamos comer pizza, gritou. Tem uma pizzaria com massa de batata deliciosa perto de minha casa, vamos transformar a palestra em bate-papo para fechar nosso dia, discorria uma alma em busca do refúgio do prazer em meio ao turbilhão de vastas emoções de acontecimentos imperfeitos.
Bem, alguma coisa precisava dar certo naquele dia, não é? Sentada entre amigos, podiam todos falar e rir das besteiras que quisessem. Podiam pedir uma pizza família de rúcula com tomate seco, frango catupiry, margueritta e atum. Podiam discorrer sobre as experiências de uma aldeia hippie em Arembepe ou sobre o show de tributo a Bob Marley do fim de semana. Ana Amélia, no seu mundo hermético, desenhava no papel da mesa a paleta de cores de sua existência, a luta para se firmar no mundo que coubesse na grandeza de seus sonhos, a saudade dos sobrinhos em São Paulo e tantos outros pensamentos, até ser repreendida por seu comportamento autista e voltar a participar das conversas na mesa. Mas era fim de festa, diziam seus olhos vermelhos, seus bocejos áridos e a cara de quem, para conseguir dormir, bastava apenas fechar os olhos.
Subiu as escadas do Edifício Quitandinha, lugar escolhido a dedo pela nossa salvadora andorinha de seu universo particular, já lembrando da bagunça que a esperava. O banho serviu para refrescar a ideia de que, apesar do dia ruim, a beleza de seus anseios permanecia intacta. E lá ia ela fazendo contas de quanto tempo faltava para escrever uma nova peça de teatro, organizar um novo sarau ou espetáculo de dança e todas as coisas que uma artista precisa para tornar o viver muito mais do que a mera existência. Faltava pouco, muito pouco para tudo isso acontecer. E o sono era uma cantiga embalando aquela mulher cheia de vidas encaixotadas, dormindo tranquila diante da famigerada desordem do mundo.
É necessário dizer que nossa bela protagonista tinha um fusca 1967 amarelo. Um mimo. E lá ia ela, anacrônica, com sua roupa indiana bordada vermelha, margarida nos cabelos e uma cesta de vime com fitinhas coloridas no carona, onde levava sua refeição vegetariana: bananas, barras de cereais e bolacha Maria. Ana Amélia é um daqueles personagens de um bom filme francês que resolveu existir de verdade, com toda sua insustentável verossimilhança. E era assim que ela ia fazendo seu trabalho de agente de uma editora de livros, de escola em escola, tirando dúvidas sobre o uso do material didático. Nem esperava ela, naquele dia, encontrar uma bagunça muito maior do que sua casa nova.
A cidade chovia de maneira torrencial. Seu fusquinha atolava em aguaceiros, não era apenas uma chuva, era um dilúvio. Todas as visitas tiveram que ser canceladas, ou pela falta de possibilidade de chegar ao local ou pela suspensão das aulas nas unidades escolares. E foi assim durante todo o dia, uma sucessão de desacertos que só encontrava refúgio na certeza de arrumar a bagunça de sua casa. Ela precisava encontrar urgentemente a caixa de meias e de roupas miúdas, estava cansada de comprar promoções de três pares de meias por nove e noventa em lojas de departamentos. Sem contar o sumiço do cabo de água da máquina de lavar que a impedia de deixar as roupas com cheiro de sabão Omo. Atolava o cartão de crédito com roupas novas.
Mas o dia não estava perdido, havia uma palestra de amigos para assistir de noite. A chuva deu trégua. E lá foi Amélia, aquela que desafiava o compositor Mário Lago e sabia ser mulher de verdade. Depois da grande dificuldade de estacionar nas ruas estreitas de Salvador, encontrou uma multidão em frente ao prédio da faculdade com várias negativas e caras de adeus. Queda de energia, aulas suspensas. Ouvia e, mais do que isso, via com seus olhos vivos de âmbar a tristeza da amiga comunicar o adiamento da palestra. O que mais faltava acontecer? Vamos comer pizza, gritou. Tem uma pizzaria com massa de batata deliciosa perto de minha casa, vamos transformar a palestra em bate-papo para fechar nosso dia, discorria uma alma em busca do refúgio do prazer em meio ao turbilhão de vastas emoções de acontecimentos imperfeitos.
Bem, alguma coisa precisava dar certo naquele dia, não é? Sentada entre amigos, podiam todos falar e rir das besteiras que quisessem. Podiam pedir uma pizza família de rúcula com tomate seco, frango catupiry, margueritta e atum. Podiam discorrer sobre as experiências de uma aldeia hippie em Arembepe ou sobre o show de tributo a Bob Marley do fim de semana. Ana Amélia, no seu mundo hermético, desenhava no papel da mesa a paleta de cores de sua existência, a luta para se firmar no mundo que coubesse na grandeza de seus sonhos, a saudade dos sobrinhos em São Paulo e tantos outros pensamentos, até ser repreendida por seu comportamento autista e voltar a participar das conversas na mesa. Mas era fim de festa, diziam seus olhos vermelhos, seus bocejos áridos e a cara de quem, para conseguir dormir, bastava apenas fechar os olhos.
Subiu as escadas do Edifício Quitandinha, lugar escolhido a dedo pela nossa salvadora andorinha de seu universo particular, já lembrando da bagunça que a esperava. O banho serviu para refrescar a ideia de que, apesar do dia ruim, a beleza de seus anseios permanecia intacta. E lá ia ela fazendo contas de quanto tempo faltava para escrever uma nova peça de teatro, organizar um novo sarau ou espetáculo de dança e todas as coisas que uma artista precisa para tornar o viver muito mais do que a mera existência. Faltava pouco, muito pouco para tudo isso acontecer. E o sono era uma cantiga embalando aquela mulher cheia de vidas encaixotadas, dormindo tranquila diante da famigerada desordem do mundo.
2 comentários:
A bagunça do quarto é mais que metáfora: muitas vezes o estado de arrumaççao do quarto reflete o estado de ordem da nossa alma. E o meu está uma bagunça no momento!
Bruno:
Fiquei com pena da minha quase xará... Tadinha... Deu quase tudo errado...
Mas a crônica está linda! "cheia de vidas encaixotadas"... Bruno, cê tem imagens belíssimas!
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