A chuva cai silenciosa. Anoiteceu e com a chegada do outono já começa a esfriar. As pessoas em seus lugares sob a marquise, em que passam todas as noites. Sempre o primeiro a chegar é um rapaz com seu cão, um vira-lata chamado Pretinho. São doze no grupo e Vó e a neta foram as últimas a se juntar a eles, há três semanas atrás.
Para elas tudo começou quando os pais da menina (ele, filho de Vó) foram julgados e condenados à morte pelos traficantes da favela sob a acusação de serem X9, ou seja, informantes da polícia. Eram viciados em drogas, não puderam provar inocência e, sendo assim, corta-se o mal pela raiz. Decisão do dono do local. A ordem era passar o rodo em quem estivesse no barraco, largar o aço em todos para dar o exemplo do que acontece com quem os desafia. Vó e a menina foram salvas pelo encarregado de cumprir a sentença, braço direito do chefão, que interferiu por elas e pediu que fossem poupadas. Ele ainda guarda na memória as vezes que ela lhe deu um prato de comida ou tratou de seus machucados de criança, tão pequenino e já entregue à própria sorte. Conhecido pela sua crueldade, ainda há nele um resquício de ternura, sente gratidão e admira o amor e o cuidado que ela dedica à menina. Não havia o que temer da parte delas e, por ser de confiança, a quem o chefe confia a própria vida, teve o pedido atendido, mas com a condição de que as duas deixassem imediatamente a favela, não pedissem ajuda a ninguém e nunca mais voltassem.
Sem saber o que fazer, sem poder pedir ajuda aos vizinhos ou conhecidos por carregar com elas uma sentença de morte para quem ousasse fazê-lo, perambularam sem rumo até quase a exaustão e quando, vencidas pelo cansaço, viram aquelas pessoas sob a marquise, aproximaram-se, e Vó perguntou ao dono do Pretinho se poderiam ficar ali, tendo o rapaz respondido que sim. Elas precisavam descansar e depois Vó pensaria o que fazer de suas vidas, vidas que ganhara como um prêmio pelas suas boas ações, embora nunca as praticasse com o intuito de ganhar alguma coisa por elas.
Esta noite o desânimo começara a tomar conta dela. Está ali há mais tempo do que esperava. Não conseguiu um lugar para ficarem, não consegue emprego, não pode procurar a família que mora na favela, as pessoas mal olham para elas, mesmo quando as ajudam. É como se não fossem gente. Já constatou com tristeza que tratam melhor o Pretinho do que a elas. Não é que ela não goste dele, gosta muito, é bom vigia e dá sinal quando desconhecidos se aproximam, é esperto e dá a patinha quando a menina pede, a criança o adora e é com ele que ainda brinca. Mas tratarem o cão melhor do que a neta está além de sua compreensão.
Hoje o peso de viver na rua se fez presente. Era pobre mas não era pedinte, tinha o seu canto para morar. Também a comida faz falta. Como preparar uma refeição naquelas condições? O dia foi difícil, quase não comeram e a menina sentia fome. Ali todos estavam na mesma situação. Às vezes até dividem algo, mas hoje não houve o que dividir. Vó teme o desespero, sabe que a menina só tem a ela, não pode desistir. A menina chorava baixinho e, sem ter a quem recorrer, Vó pediu aos céus. Reuniu suas forças e suplicou à Virgem Maria que olhasse por elas, que ajudasse aquela criança inocente que só faz sofrer.
Passaram-se alguns minutos e um carro parou em frente à marquise. Pretinho não latiu, o que significava que conhecia o carro. Desceram dois casais e duas jovens, certamente filhas do casal mais velho. Os homens abriram o porta-malas e entregaram às moças uma garrafa térmica bojuda e copos descartáveis e às suas mulheres, as quentinhas. As senhoras, uma ainda jovem, movimentaram-se entre eles com passos calmos e com vozes suaves ofereceram a comida olhando-os de um modo fraterno, que Vó não via há tempos. As jovens serviram a bebida e quando abriram a garrafa, o cheiro do café coado há pouco entrou pelas narinas de Vó trazendo à tona lembranças de uma vida que ficou para trás e que ela desejava ter de volta. Por uns instantes, o cheiro da comida fresca, macarrão com salsichas e do café transformaram o lugar num refeitório onde todos comeram num respeitoso silêncio.
Ao se retirarem, o homem mais velho perguntou à mulher se todos foram servidos. Ele a chamou pelo nome e Vó ouviu. Maria é o nome dela. Uma grande emoção tomou conta de Vó. O rapaz ao lado comentou que eles estavam sumidos, mas que costumavam vir pelo menos uma vez por semana. Vó não tomou conhecimento. Para ela, não foi coincidência, e sim sua súplica, que fora atendida. Precisava acreditar nisso para seguir em frente. Nesta noite, apesar do mau tempo, aquelas famílias que poderiam estar no aconchego de seus lares, vendo tevê ou simplesmente descansando, foram para a cozinha preparar aquela comida fresquinha, gostosa, feita no capricho. Vó sabia disso muito bem, entende do riscado, pois é daquelas pessoas que fazem de um feijão com arroz e ensopadinho, uma iguaria.
A menina, saciada, adormeceu com a cabeça no seu colo.
Vó está entregue aos seus pensamentos e conclui que se foi atendida hoje, quem sabe não será novamente? Enche-se de esperança, quer suas vidas de volta. Pedirá uma casinha que pode ser bem pequena: telhado, quatro paredes, uma porta e uma janela, um banheirinho onde possam fazer a higiene e as necessidades. Um lar para as duas. E ela manterá a casa bem limpa e arrumada, pedirá retalhos e fará uma colcha bem colorida e alegre. A menina irá para a escola e brincará com as crianças de sua idade enquanto ela as observará sentada na soleira da porta. E quando entrarem para dormir, a menina tomará banho e vestirá roupa fresca no calor e roupa quente no frio. Ela servirá um copo de leite e cantará ou contará histórias até que a menina adormeça.
Vó sabe que está pedindo uma graça muito grande, mas está decidida. Suplicará, suplicará e suplicará, todos os dias, com todas as suas forças, o quanto for necessário. Como o pedido é de monta, ela o fará para todos os que lembrar, e um dia a ouvirão, e um destes há de chegar: José, Pedro, Aparecida, Antônio, Francisco, Expedito, Bárbara, Conceição, Sebastião, Jorge, Benedito, Geraldo, Luzia, João, Cosme, Damião...
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Para elas tudo começou quando os pais da menina (ele, filho de Vó) foram julgados e condenados à morte pelos traficantes da favela sob a acusação de serem X9, ou seja, informantes da polícia. Eram viciados em drogas, não puderam provar inocência e, sendo assim, corta-se o mal pela raiz. Decisão do dono do local. A ordem era passar o rodo em quem estivesse no barraco, largar o aço em todos para dar o exemplo do que acontece com quem os desafia. Vó e a menina foram salvas pelo encarregado de cumprir a sentença, braço direito do chefão, que interferiu por elas e pediu que fossem poupadas. Ele ainda guarda na memória as vezes que ela lhe deu um prato de comida ou tratou de seus machucados de criança, tão pequenino e já entregue à própria sorte. Conhecido pela sua crueldade, ainda há nele um resquício de ternura, sente gratidão e admira o amor e o cuidado que ela dedica à menina. Não havia o que temer da parte delas e, por ser de confiança, a quem o chefe confia a própria vida, teve o pedido atendido, mas com a condição de que as duas deixassem imediatamente a favela, não pedissem ajuda a ninguém e nunca mais voltassem.
Sem saber o que fazer, sem poder pedir ajuda aos vizinhos ou conhecidos por carregar com elas uma sentença de morte para quem ousasse fazê-lo, perambularam sem rumo até quase a exaustão e quando, vencidas pelo cansaço, viram aquelas pessoas sob a marquise, aproximaram-se, e Vó perguntou ao dono do Pretinho se poderiam ficar ali, tendo o rapaz respondido que sim. Elas precisavam descansar e depois Vó pensaria o que fazer de suas vidas, vidas que ganhara como um prêmio pelas suas boas ações, embora nunca as praticasse com o intuito de ganhar alguma coisa por elas.
Esta noite o desânimo começara a tomar conta dela. Está ali há mais tempo do que esperava. Não conseguiu um lugar para ficarem, não consegue emprego, não pode procurar a família que mora na favela, as pessoas mal olham para elas, mesmo quando as ajudam. É como se não fossem gente. Já constatou com tristeza que tratam melhor o Pretinho do que a elas. Não é que ela não goste dele, gosta muito, é bom vigia e dá sinal quando desconhecidos se aproximam, é esperto e dá a patinha quando a menina pede, a criança o adora e é com ele que ainda brinca. Mas tratarem o cão melhor do que a neta está além de sua compreensão.
Hoje o peso de viver na rua se fez presente. Era pobre mas não era pedinte, tinha o seu canto para morar. Também a comida faz falta. Como preparar uma refeição naquelas condições? O dia foi difícil, quase não comeram e a menina sentia fome. Ali todos estavam na mesma situação. Às vezes até dividem algo, mas hoje não houve o que dividir. Vó teme o desespero, sabe que a menina só tem a ela, não pode desistir. A menina chorava baixinho e, sem ter a quem recorrer, Vó pediu aos céus. Reuniu suas forças e suplicou à Virgem Maria que olhasse por elas, que ajudasse aquela criança inocente que só faz sofrer.
Passaram-se alguns minutos e um carro parou em frente à marquise. Pretinho não latiu, o que significava que conhecia o carro. Desceram dois casais e duas jovens, certamente filhas do casal mais velho. Os homens abriram o porta-malas e entregaram às moças uma garrafa térmica bojuda e copos descartáveis e às suas mulheres, as quentinhas. As senhoras, uma ainda jovem, movimentaram-se entre eles com passos calmos e com vozes suaves ofereceram a comida olhando-os de um modo fraterno, que Vó não via há tempos. As jovens serviram a bebida e quando abriram a garrafa, o cheiro do café coado há pouco entrou pelas narinas de Vó trazendo à tona lembranças de uma vida que ficou para trás e que ela desejava ter de volta. Por uns instantes, o cheiro da comida fresca, macarrão com salsichas e do café transformaram o lugar num refeitório onde todos comeram num respeitoso silêncio.
Ao se retirarem, o homem mais velho perguntou à mulher se todos foram servidos. Ele a chamou pelo nome e Vó ouviu. Maria é o nome dela. Uma grande emoção tomou conta de Vó. O rapaz ao lado comentou que eles estavam sumidos, mas que costumavam vir pelo menos uma vez por semana. Vó não tomou conhecimento. Para ela, não foi coincidência, e sim sua súplica, que fora atendida. Precisava acreditar nisso para seguir em frente. Nesta noite, apesar do mau tempo, aquelas famílias que poderiam estar no aconchego de seus lares, vendo tevê ou simplesmente descansando, foram para a cozinha preparar aquela comida fresquinha, gostosa, feita no capricho. Vó sabia disso muito bem, entende do riscado, pois é daquelas pessoas que fazem de um feijão com arroz e ensopadinho, uma iguaria.
A menina, saciada, adormeceu com a cabeça no seu colo.
Vó está entregue aos seus pensamentos e conclui que se foi atendida hoje, quem sabe não será novamente? Enche-se de esperança, quer suas vidas de volta. Pedirá uma casinha que pode ser bem pequena: telhado, quatro paredes, uma porta e uma janela, um banheirinho onde possam fazer a higiene e as necessidades. Um lar para as duas. E ela manterá a casa bem limpa e arrumada, pedirá retalhos e fará uma colcha bem colorida e alegre. A menina irá para a escola e brincará com as crianças de sua idade enquanto ela as observará sentada na soleira da porta. E quando entrarem para dormir, a menina tomará banho e vestirá roupa fresca no calor e roupa quente no frio. Ela servirá um copo de leite e cantará ou contará histórias até que a menina adormeça.
Vó sabe que está pedindo uma graça muito grande, mas está decidida. Suplicará, suplicará e suplicará, todos os dias, com todas as suas forças, o quanto for necessário. Como o pedido é de monta, ela o fará para todos os que lembrar, e um dia a ouvirão, e um destes há de chegar: José, Pedro, Aparecida, Antônio, Francisco, Expedito, Bárbara, Conceição, Sebastião, Jorge, Benedito, Geraldo, Luzia, João, Cosme, Damião...
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3 comentários:
Belíssima crônica. Fiquei emocionada quando li e ao mesmo tempo feliz por ter recomendado DUELOS pra você sem nem saber de todo esse seu talento. É um texto denso ao mesmo tempo que é enternecedor. Beijos e desejos de novos escritos toda semana.
Clarice!
DEMAIS!!!!!!!
LINDA!!!!!!!!
Dá até vontade de fazer umas marmitinhas e sair distribuindo por aí!
Parabéns!
Tratar de um tema tão duro com tanta delicadeza não é para todo mundo não, viu?
PARABÉNS!!
Vou acompanhar os seus textos de agora em diante...
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