Onde me afasto do mundo;
Tomando tantos remédios,
Buscando um dormir profundo
Que me isole dos meus sonhos,
Também dos meus pesadelos,
Pois uns não se concretizam,
Com os outros arranco os cabelos.
Então vou ficando careca
De tanto esquentar a cabeça.
Vou te contar o motivo:
Vejo fantasmas à beça.
Isso é culpa do meu pai,
Tão burro, tão esquisito,
Foi abrir uma funerária
Na própria casa, o maldito!
Já criança convivia
Com ele a cuidar das pessoas:
Lavava, vestia, arrumava,
E eu ajudava… na boa.
Então eu cresci assim,
Achando isso tudo normal,
Mas um dia eu descobri
O horror sobrenatural.
Como efeito funesto
Desta minha intimidade,
Os fantasmas dos clientes
Criaram dificuldades:
Começaram os petelecos,
Os gritos, os empurrões,
Os sustos a toda hora,
Pedidos e palavrões.
Almas pra todos os gostos,
Todas as raças e classes,
Pombas-giras, hare-krishnas,
Rabinos e kamikazes.
Desde meus quatorze anos
Na vida não tenho paz…
A morte me traz de tudo,
Me atentam até animais.
Pedi então, aos meus pais,
Um quarto só para mim,
Pra poder me proteger
Do assédio dos zumbis.
Dividir quarto não dava
Com meus outros seis irmãos,
Eles não gostam de mortos
E eu tinha uma solução:
Um exorcista famoso
Foi cliente lá da loja,
Usei seus restos mortais
Para afastar essa corja
Dos limites deste quarto,
Colocando, diariamente,
Um pouco do pó do santo
Nos umbrais e no batente.
E por causa disso, então,
Neste quarto são barrados;
Mas ficam do lado de fora
Berrando, os alucinados!
E todos os dias acordo
Em meio à maior zoeira:
Um vai convidando o outro
E assim cerrando as fileiras.
Eles são tão criativos
E também organizados,
Pra cada dia da semana
Têm um programa montado:
Às quintas, há possessão,
Às sextas, não posso comer,
Aos sábados, ladainha,
Domingos, karaokê,
Às segundas, vejam só,
Me jogam pelas janelas,
Às terças, total desespero!,
Dia de bater panelas.
Dolorosas são as quartas:
Resolvem arrastar correntes…
Nos dias de feriados
Danam a ranger os dentes.
Não agüento mais sofrer…
Eles são tão insistentes!
Pelas cinzas de minha avó
Já jurei, solenemente,
Nunca mais quebrar vasinho,
Nunca mais chutar jazigo,
Nunca mais roubar defunto,
Nunca mais puxar umbigo.
Não fazia de maldade
Ir zoar no cemitério,
Trazer sempre souvenir
Quando ia ao necrotério.
Peço a Deus pra me livrar,
Acho que eu meio mereço…
No quarto, com dedos nervosos
Giro as contas do meu terço
Pedindo pra eles sumirem…
Parece um tormento eterno!
Não agüento este sexto sentido!
Vão pros quintos dos infernos!
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Um comentário:
Triste quarto com triste mulher
Nasceu infeliz
bonita mulher
Teve
na época errada
uma filha bastarda
Mais tarde
dois filhos gerados
com homem apaixonado
Família se fez
o tempo passa
a beleza o tempo consome
em outras mulheres
se consola o homem
A mulher se desgasta
com a filha bastarda
com a mãe agregada
família esgarçada
Alcoólatra
escreve
escreve
Doença implacável
mutilada
pulmão corroído
perfurado
o ar não lhe alcança
Reencontra na dor
por breve tempo
o homem que um dia
apaixonado foi
Breve tempo
o homem se vai
Resta a mulher
no quarto azul
do triste hospital
sua ultima morada
Com a filha bastarda
filhos ausentes
morre
deixando tristes imagens
em tristes escritos
da vida sofrida.
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