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quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Auras Entrelaçadas - por Alba Vieira

Eu estava distraída, envolta em pensamentos, quando fui arrancada deles, de súbito, por uma tela à minha frente com um poema de Manuel Bandeira. Dizia ele: “Meu verso é sangue. Volúpia ardente...” e por aí vai. Enquanto chegava ao meu destino, pelo metrô, fui reparando nos cabelos longos, lisos, castanho-claros, pesados que me dificultavam ler os versos impressos na camiseta branca muito limpa. As costas eram largas, embora suaves, como asas. Ponderei que aquela mulher era diferente da maioria. Imediatamente fiz a ligação: é que tenho uma pessoa muito especial, o meu amor, que tem costas como aquelas. Era tarde de calor e, por isso, aqueles cabelos eram constantemente afastados das costas para, talvez, refrescar a nuca, o que expunha pedaços daqueles versos despudorados.
Mas eu sabia que, mais que os versos, me chamava a atenção a pessoa que os carregava e passei a perscrutá-la então.
Os cabelos bonitos... Eu ia cortar meus cabelos aquele dia, eles que são para mim o termômetro para meus estados de humor: se fervo por dentro, eles se eriçam; se clamo por liberdade, eles se rebelam, desarrumam, esvoaçam; se repouso mansa depois do amor, eles sossegam, perfeitamente alinhados e macios. Meus cabelos são porta-vozes de minh’alma.
Chegamos à estação e quando se levantou, que surpreendente! Não era uma mulher e sim um rapaz. E que rapaz! Virou-se para levantar e me expôs o rosto claro, quase alvo, de traços finos embora meio retangular na forma, de barba cerrada e um bigodezinho que apenas se insinuava sobre os lábios vermelhos, como a tentar protegê-los de alguém assim tão invasivo como eu. O pescoço era firme, sustentava uma cabeça ereta, plena de idéias... e de sonhos. Carregava nas mãos um livro. Este, eu havia reparado, ia lendo durante o percurso, sublinhando os pontos de destaque. Lia o livro calmamente enquanto se remexia vez por outra no banco. Sobre o que versava aquele livro? Não pude lê-lo junto nem olhar sequer o título ou o autor na capa. Era um mistério!
O rapaz era um mistério a ser desvendado. Tinha de sabê-lo apenas com os elementos que me fornecia, sem intenção: pelo andar, os detalhes do corpo, a postura, o olhar...
Era um rapaz de costas largas embora leves, suaves, que portava um livro, somente um livro nas mãos, que carregava com delicadeza, sem apertá-lo. Caminhava com segurança, tinha uma boa base nos pés largos e grandes, protegidos por uma sandália franciscana amarronzada; as pernas eram bem torneadas, cabeludas, com joelhos roliços, muito pouco rígidos, o que lhe conferia um balanço no andar, uma malemolência gostosa de observar. E as coxas? Eram grossas e dava para sentir que seriam leves ao toque. Imagino que ele devesse apenas pousar as coxas em contatos mais íntimos. A pélvis era solta, não lhe servia como escudo ou objeto de exibição nem dominação. Era suave, não ostentava nem agredia, somente oferecia. Barriga não tinha, com certeza praticava algum esporte. Parecia tão saudável e expunha nas costas versos que falavam, num realismo poético, sobre sentimento.
Assim saí pela estação do metrô despreocupada e, na escada, reparei que casualmente estava na minha frente. Fui atrás dele, como se de alguma forma me atraísse. Não só os versos, ele todo. Um rapaz daquela idade, geralmente, não tem uma expressão tão grave. Andar e doçura de menino curioso, costas aladas e no rosto a barba séria. O tórax largo, trabalhado pela ginástica, guardando um coração grandioso certamente, isso me diziam suas mãos largas de pele fina, protetoras e doadoras: mãos generosas e intuitivas. É que eu sei ler nas mãos tipos de personalidade. Trabalho com isso, não por intromissão, mas por curiosidade e vontade de conhecer o outro mais profundamente.
Agora percebo o que me atraiu nesse rapaz: era alguém profundo. E fui sendo conduzida por ele, pela vontade de conhecê-lo melhor. Ele se afastou, tomou outra rua, atravessou bem antes de mim e nos distanciamos. Pude vê-lo de longe, indo embora para cumprir seu destino e eu... ia cortar os cabelos. Pensei: nem pude ler todo o poema.
Continuei a caminhada. E não é que ele resolveu voltar pela mesma rua que eu tinha tomado e agora estava novamente na minha frente? Agora seria eu que o atraía? O meu interesse por ele? Percebera em minha aura as semelhanças entre nós? Não sei. O fato é que podia agora voltar a observá-lo. Ele olhava para os lados, para as pessoas, os braços escorriam ao longo do corpo, fortes, protetores, iam para frente e para trás num movimento compassado, como se fosse um remador.
E o pescoço grosso, firme mas flexível - não sei se em função da idade ou por natureza mesmo - era um pedestal para a cabeça plena, de cabelos fartos e longos. Nossos passos eram ritmados. Buscava acompanhar o seu ritmo para não ultrapassá-lo, embora eu tivesse pressa. Mas não queria deixá-lo. Era como um irmão. Era um irmão mesmo, uma alma fraterna.
Aí, enquanto absorvia aquele ser que se encaixava perfeitamente em mim, passei a seu lado e o ultrapassei, seguindo meu rumo. Na verdade, não passei por ele, passei-o para mim, tomei-o, ficou sendo parte de mim. Saí na sua frente mais leve, mais jovial, cheia de sonhos, com a sua esperança e boa vontade para com o mundo. Agora eu era aquele rapaz, ele era uma subpersonalidade minha, foi uma obsessão voluntária, ao inverso. E eu, me tornei não pesada como os obsediados comumente ficam, mas clara, iluminada, gostando mesmo daquilo.
Em casa, procuraria o poema de Manuel Bandeira e dormiria, à noite, em paz.
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