O texto escrito por Eve Ensler, que posteriormente deu origem aos famosos Monólogos da Vagina, foram baseados numa serie de testemunhos que a escritora recolheu junto de um grupo bastante heterogéneo de mulheres. Uns mais emotivos e chocantes, outros mais descontraídos (chegando alguns a ser até hilariantes), estes testemunhos são (na sua maioria) uma prova de que muitas vezes não somos mais mulheres porque teimamos em ignorar, em não entender e a desrespeitar nossa linguagem instintiva. De todos eles, há um que me agrada particularmente, trata-se de um testemunho ao qual Eve intitulou de “A Inundação” e que eu não resisto em enviar-to. De certo que te vais deliciar com o testemunho desta septuagenária americana, mais propriamente de Queens. Penso que é a melhor maneira de descrever o meu bloqueio no Optimus Alive… Também naquele momento houve uma tremenda “torrente”… É que nos meus sonhos o caudal do rio sobe demasiado às vezes…
“As minhas partes baixas? Já não as visito desde 1953. Não, não teve nada a ver com o Eisenhower. Não, não. Lá em baixo há uma cave. É muito húmida. Descer até lá não é nada agradável. Acredite em mim. Uma pessoa fica agoniada. É sufocante. Dá enjoos. Há um cheiro a humidade e bolor. Ui! É insuportável. Cola-se à roupa.
Não, não houve um acidente ali em baixo. Não houve uma explosão nem um incêndio. Não aconteceu nada desse género. Não foi nada assim tão dramático. Aliás… bem, não interessa. Não. Não interessa. Não posso falar consigo sobre isso. Porque é que uma pessoa inteligente como a menina anda por aí a falar com velhotas sobre as suas partes baixas? Quando eu era rapariga, não era assim que nos entretínhamos. O quê? Deus do céu, está bem.
Houve um rapaz. Chamava-se Andy Leftkov. Era giro… bem, pelo menos eu assim pensava. Era alto, tal como eu, e eu gostava muito dele. Convidou-me para dar uma volta no seu carro…
Não lhe posso contar isto. Não posso falar sobre o que há lá em baixo. A gente simplesmente sabe que existe. É como uma cave. Por vezes ouvem-se ruídos lá em baixo. Ouvem-se os canos e certas coisas ficam presas… coisas e animais pequenos. É húmida e por vezes é preciso tapar as fendas. Porém, a porta está quase sempre fechada. Esquecemo-nos de que existe. Repare… uma cave faz parte da casa mas não a vemos nem pensamos nela. Mas existe porque em todas as casas é necessária uma cave. Caso contrário, o quarto seria na cave.
Oh, o Andy, o Andy Leftkov. Certo. O Andy era um rapaz bonito. Era um bom partido. Era o que dizíamos naquela altura. Estávamos no carro dele, um Chevrolet BelAir branco novinho em folha. Lembro-me de pensar que as minhas pernas eram demasiado compridas para o banco. Eu tenho as pernas muito compridas. Batiam no tablier. Eu olhava para os meus joelhos grandes quando ele me beijou de surpresa tal como nos filmes, na cena em que o rapaz abraça a rapariga e a arrebata. Fiquei excitada, muito excitada e, bem, houve uma torrente lá em baixo. Era incontrolável. Era como se uma corrente de paixão, um rio de vida, jorrasse de mim, das minhas cuecas, direitinha ao banco do seu Chevrolet BelAir novinho em folha. Não era urina e cheirava mal. Bem, para ser sincera, não me cheirava a absolutamente nada mas o Andy disse que cheirava a leite azedo e que eu estava a manchar o banco do carro. Eu era uma ‘rapariga esquisita e malcheirosa’, dizia ele. Queria explicar-lhe que o beijo me tinha apanhado desprevenida e que normalmente eu não era assim. Tentei enxugar a torrente com o meu vestido. Era um vestido novo amarelo-claro e, manchado pela torrente, ficou muito feio. Sem me dirigir a palavra, o Andy levou-me a casa e, quando saí do carro e fechei a porta, também fechei a loja. Fechei-a à chave. Nunca mais se abriu. Depois, ainda saí algumas vezes com rapazes mas o receio de outra torrente deixava-me muito nervosa.
Eu costumava ter sonhos. Sonhos loucos. Oh, são disparates. Porquê? Porque eu sonhava com o Burt Reynolds. Não sei porquê. Nunca me entusiasmou muito na vida real mas nos meus sonhos… era sempre eu e o Burt. Eu e o Burt. O Burt e eu. Eu e o Burt saímos juntos. Fomos a um restaurante semelhante a tantos outros em Atlantic City. Um restaurante grande com candelabros enormes e milhares de empregados de mesa com coletes. O Burt dava-me uma orquídea para pôr ao peito. Eu prendia-a ao meu casaco. Ríamo-nos. Ríamo-nos muito, eu e o Burt. Comíamos cocktails de camarão. Camarões enormes e saborosos. Não parávamos de rir. Éramos muito felizes. Depois os nossos olhares cruzavam-se e ele puxava-me para si no meio do restaurante. Quando estava prestes a beijar-me, a sala estremecia, pombos esvoaçavam de baixo da mesa — não sei porque raio havia pombos debaixo da mesa — e surgia a torrente. Jorrava sem parar. E com ela vinham peixes e barcos pequenos e o restaurante ficava cheio de água. Burt estava ensopado até aos joelhos, com um ar terrivelmente decepcionado por eu ter feito das minhas outra vez, e olhava horrorizado para os seus amigos, o Dean Martin e outros tantos, que passavam por ele a nadar nos seus smokings e vestidos de noite.
Já não tenho estes sonhos. Desde que me tiraram praticamente tudo o que estava nas partes baixas. Retiraram-me o útero, as trompas, tudo. O médico quis armar-se em engraçadinho. Disse-me que era melhor deitar fora o que já não tinha uso. Mas descobri que afinal era um cancro. Tiraram-me tudo. De qualquer modo, quem é que precisa de tanta coisa? Não é verdade? É algo muito sobrestimado. Já fiz outras coisas. Adoro exposições de cães. E vendo antiguidades.
O que escolhia para ela? Que espécie de pergunta é essa? O que escolhia? Escolhia uma enorme tabuleta:
‘Fechada devido a inundação.’
O que diria ela? Eu já lhe disse. Não é bem a mesma coisa. Ela não é como uma pessoa que fala. Calou-se há muito tempo. É um lugar. Um lugar onde ninguém vai. Está fechada, nos subterrâneos. Fica lá em baixo. Está satisfeita? Já falei consigo… arrancou-me as palavras. Fez uma velhota falar sobre as suas partes baixas. Está satisfeita agora? [Vira as costas. Depois volta-se novamente.]
Sabe, na verdade, é a primeira pessoa a quem contei esta história e sinto-me mais aliviada.”
Um beijo enorme
.....................Aurora
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“As minhas partes baixas? Já não as visito desde 1953. Não, não teve nada a ver com o Eisenhower. Não, não. Lá em baixo há uma cave. É muito húmida. Descer até lá não é nada agradável. Acredite em mim. Uma pessoa fica agoniada. É sufocante. Dá enjoos. Há um cheiro a humidade e bolor. Ui! É insuportável. Cola-se à roupa.
Não, não houve um acidente ali em baixo. Não houve uma explosão nem um incêndio. Não aconteceu nada desse género. Não foi nada assim tão dramático. Aliás… bem, não interessa. Não. Não interessa. Não posso falar consigo sobre isso. Porque é que uma pessoa inteligente como a menina anda por aí a falar com velhotas sobre as suas partes baixas? Quando eu era rapariga, não era assim que nos entretínhamos. O quê? Deus do céu, está bem.
Houve um rapaz. Chamava-se Andy Leftkov. Era giro… bem, pelo menos eu assim pensava. Era alto, tal como eu, e eu gostava muito dele. Convidou-me para dar uma volta no seu carro…
Não lhe posso contar isto. Não posso falar sobre o que há lá em baixo. A gente simplesmente sabe que existe. É como uma cave. Por vezes ouvem-se ruídos lá em baixo. Ouvem-se os canos e certas coisas ficam presas… coisas e animais pequenos. É húmida e por vezes é preciso tapar as fendas. Porém, a porta está quase sempre fechada. Esquecemo-nos de que existe. Repare… uma cave faz parte da casa mas não a vemos nem pensamos nela. Mas existe porque em todas as casas é necessária uma cave. Caso contrário, o quarto seria na cave.
Oh, o Andy, o Andy Leftkov. Certo. O Andy era um rapaz bonito. Era um bom partido. Era o que dizíamos naquela altura. Estávamos no carro dele, um Chevrolet BelAir branco novinho em folha. Lembro-me de pensar que as minhas pernas eram demasiado compridas para o banco. Eu tenho as pernas muito compridas. Batiam no tablier. Eu olhava para os meus joelhos grandes quando ele me beijou de surpresa tal como nos filmes, na cena em que o rapaz abraça a rapariga e a arrebata. Fiquei excitada, muito excitada e, bem, houve uma torrente lá em baixo. Era incontrolável. Era como se uma corrente de paixão, um rio de vida, jorrasse de mim, das minhas cuecas, direitinha ao banco do seu Chevrolet BelAir novinho em folha. Não era urina e cheirava mal. Bem, para ser sincera, não me cheirava a absolutamente nada mas o Andy disse que cheirava a leite azedo e que eu estava a manchar o banco do carro. Eu era uma ‘rapariga esquisita e malcheirosa’, dizia ele. Queria explicar-lhe que o beijo me tinha apanhado desprevenida e que normalmente eu não era assim. Tentei enxugar a torrente com o meu vestido. Era um vestido novo amarelo-claro e, manchado pela torrente, ficou muito feio. Sem me dirigir a palavra, o Andy levou-me a casa e, quando saí do carro e fechei a porta, também fechei a loja. Fechei-a à chave. Nunca mais se abriu. Depois, ainda saí algumas vezes com rapazes mas o receio de outra torrente deixava-me muito nervosa.
Eu costumava ter sonhos. Sonhos loucos. Oh, são disparates. Porquê? Porque eu sonhava com o Burt Reynolds. Não sei porquê. Nunca me entusiasmou muito na vida real mas nos meus sonhos… era sempre eu e o Burt. Eu e o Burt. O Burt e eu. Eu e o Burt saímos juntos. Fomos a um restaurante semelhante a tantos outros em Atlantic City. Um restaurante grande com candelabros enormes e milhares de empregados de mesa com coletes. O Burt dava-me uma orquídea para pôr ao peito. Eu prendia-a ao meu casaco. Ríamo-nos. Ríamo-nos muito, eu e o Burt. Comíamos cocktails de camarão. Camarões enormes e saborosos. Não parávamos de rir. Éramos muito felizes. Depois os nossos olhares cruzavam-se e ele puxava-me para si no meio do restaurante. Quando estava prestes a beijar-me, a sala estremecia, pombos esvoaçavam de baixo da mesa — não sei porque raio havia pombos debaixo da mesa — e surgia a torrente. Jorrava sem parar. E com ela vinham peixes e barcos pequenos e o restaurante ficava cheio de água. Burt estava ensopado até aos joelhos, com um ar terrivelmente decepcionado por eu ter feito das minhas outra vez, e olhava horrorizado para os seus amigos, o Dean Martin e outros tantos, que passavam por ele a nadar nos seus smokings e vestidos de noite.
Já não tenho estes sonhos. Desde que me tiraram praticamente tudo o que estava nas partes baixas. Retiraram-me o útero, as trompas, tudo. O médico quis armar-se em engraçadinho. Disse-me que era melhor deitar fora o que já não tinha uso. Mas descobri que afinal era um cancro. Tiraram-me tudo. De qualquer modo, quem é que precisa de tanta coisa? Não é verdade? É algo muito sobrestimado. Já fiz outras coisas. Adoro exposições de cães. E vendo antiguidades.
O que escolhia para ela? Que espécie de pergunta é essa? O que escolhia? Escolhia uma enorme tabuleta:
‘Fechada devido a inundação.’
O que diria ela? Eu já lhe disse. Não é bem a mesma coisa. Ela não é como uma pessoa que fala. Calou-se há muito tempo. É um lugar. Um lugar onde ninguém vai. Está fechada, nos subterrâneos. Fica lá em baixo. Está satisfeita? Já falei consigo… arrancou-me as palavras. Fez uma velhota falar sobre as suas partes baixas. Está satisfeita agora? [Vira as costas. Depois volta-se novamente.]
Sabe, na verdade, é a primeira pessoa a quem contei esta história e sinto-me mais aliviada.”
Um beijo enorme
.....................Aurora
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Visitem Violeta
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Um comentário:
Muito legal, Violeta!
Beijo.
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