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segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Mulher e a Batedeira - por Alba Vieira

Era uma senhora de olhar vivíssimo. Sentada em sua cadeira de balanço, tomava conta de tudo que se passava na casa. Não era uma cadeira comum, dessas austríacas. Não. A sua cadeira era corpulenta, como ela. Mais parecia um trono. E girava, para que a visão do mundo se assemelhasse à do gavião. Não era uma ave de rapina, essa mulher no alto dos seus oitenta e um anos. Era antes uma mãe, na concepção mais antiga da palavra, imagem de proteção calorosa por debaixo de suas asas, mas sem esquecer da visão aguda, da percepção do todo que era a sua marca e, principalmente, do olhar hipnotizador.
Agora, reinava em sua cadeira, de onde saía somente para o banho, descansar durante o dia, as horas de sono da madrugada ou para um ocasional passeio de carro que era o seu êxtase. No mais, permanecia sentada, atenta, interagindo com todos na casa, dando idéias, ensinando a fazer a comida do seu jeito, pois sessenta e tantos anos de cozinha não eram para se jogar fora e, afinal, queria a comida exatamente ao seu gosto.
Ela era meticulosa sim. E exigente. Tudo devia correr dentro do previsto. Acompanhava as horas. Havia em sua casa inúmeros relógios, em todos os cômodos, até no banheiro, em alguns lugares mais de um. Era justificado. Passara toda a sua vida, prisioneira do relógio ou, quem sabe, estimulada por ele, desdobrando-se nas tarefas domésticas. Tivera doze filhos e sempre se queixava, pois, desses, dois nasceram prematuros e não vingaram por falta de cuidados médicos. Os outros dois, de uma gravidez de trigêmeos, tiveram morte intra-útero, no sétimo mês, tendo sobrevivido só uma das filhas, hoje magrinha, mas muito forte e corajosa. Ah, seus filhos, sua criação, muitos, pois que sempre fora exagerada. Exagera ainda hoje, velhinha. Não é daquelas anciãs sábias, sequinhas. Ela é roliça. O neto diz que parece um bujãozinho. O rosto é redondo, vermelhinho com os dois olhos pretos como azeitonas. São olhos tímidos. Mas quando não se olha para eles - que então ficam envergonhados e fogem - são firmes e atingem os olhares mais difíceis.
Ela é minha mãe. Talvez por isso mesmo a conheça tão bem. Ou melhor, só passei a conhecê-la assim depois que afastei a idéia de que justamente era minha mãe. E mais, só pude vislumbrar a sua riqueza quando deixei de adivinhá-la; eu que sempre sabia o que esperar dela, presenteei-a com a liberdade de dela nada mais esperar, permitir que depois de tantos anos de vida pudesse ser o que realmente era.
Pois que essa senhora não era só a mãe prestimosa, aquela que fazia milagres com os parcos recursos do marido padeiro. Nem somente aquela que “batia” na máquina de costura madrugadas inteiras para poder formar os filhos em colégios particulares, seu maior orgulho. Ou alguém de extrema competência que arrumava, lavava, cozinhava, costurava para a família e para ganhar dinheiro, orientava, acarinhava e ainda estimulava a independência e auto-suficiência nos filhos. Só não lhe sobrava muito tempo para amar. Com a chegada dos filhos foi sufocando dentro dela o amor de mulher. Assim o seu corpo foi engordando de desejo represado. Distanciou-se de si mesma e do marido, seu amor. Não poderia vê-lo de fato, não poderia dispor de tempo para ela com tantos filhos sob sua proteção. E para não amá-lo com o desejo que tinha que sepultar dentro de si, só não o enxergando. Passou com os anos a ignorá-lo, a despeito de amá-lo tanto. E não olhando para ele deixava de olhar também para si. E dessa forma o tempo foi passando e essa distorção foi sendo tida como a realidade. Mas não era. A realidade que trazia em si era um amor forte, intenso, daqueles que o corpo parece não suportar de tão profundo.
Essa mulher escondeu-se de si por tantos anos que quase apagou o resto de doçura que guardava em seu peito, ainda hoje macio e acolhedor. Acho que por isto teve um infarto.
O amor motivou toda a sua vida. Mas escondia dos filhos e talvez do próprio marido o sentimento forte. Passava por alguém pragmático, que só se importava com as obrigações, que se fazia refém das culpas vindas não se sabe de onde. Escondia o fervor que tinha pela vida, a tendência romântica. Eu mesma, a caçula, cresci sem assistir uma vez que fosse a uma demonstração explícita de carinho entre os meus pais. Nunca presenciei um beijo, um abraço, salvo nos aniversários e no Natal, verdade seja dita. Pode-se dizer que ela endureceu para se proteger de si mesma. Que bobagem! Ninguém consegue fazer isso para sempre.
Agora essa mulher roliça, de olhos vivos, deixou-se florescer. Imaginem que se libertou depois que teve um acidente vascular cerebral! Deixou que caíssem por terra todas as suas resistências. É certo que somente depois de muito brigar e espernear, tentando manter-se como sempre tinha sido. Finalmente suavizou-se. Agora os seus movimentos são mais lentos, eu diria mesmo que ganhou uma certa sensualidade. A fala não é mais aquela rajada de metralhadoras de antes, quando ficava irritada. Fala pausadamente. E o ganho maior e mais surpreendente: a lesão cerebral deixou que sua emoção aflorasse. Que sábio é o organismo! Minha mãe chora com facilidade, emociona-se frequentemente, exagera como sempre, é certo. Esse coração, antes lacrado, escorre amor por toda ela que se derrama em doçura todo o tempo. Passou a ouvir músicas românticas, presta atenção às letras e proclama o amor com entusiasmo. Diz que todos os filhos precisam ouvir, que suas vidas, principalmente na área conjugal, melhorariam sensivelmente se eles seguissem os conselhos de Zezé di Camargo.
Em sua cadeira-trono ouve músicas de amor o dia todo. E se perto dela surge uma discussão mais inflamada, aumenta o som para abafar a confusão tão desnecessária. Essa sábia senhora continua ensinando a todos nós.
Minha mãe é assim, arrebatadora e surpreendente. Não é dessas velhinhas que esclerosam e passam a falar coisas sem muito nexo, se bem que, sabendo-se ouvir, nenhuma manifestação na velhice é de todo descabida. Ela mantém a coerência, só que consegue a transformação quase imediatamente, deixando os filhos atônitos por mudar de forma tão rápida seus pontos de vista de tantos anos.
Antes, ela ignorava a necessidade da vida afetiva dos filhos. Hoje, ela estimula. Antes, ela era rígida e agora é mais flexível do que a neta consegue ser. No passado, se torturava com o excesso de trabalho e hoje, se deleita com o lazer e faz questão de se presentear com passeios, descanso e festas. Quis festejar seus 80 anos, depois 81 e no próximo ano terá a festa dos 82 anos. Vejam só, ela que nunca fazia para si nem um bolinho de aniversário, só para os filhos, é claro.
Nessa jornada que foi a sua vida, o marido se foi há três anos. A propósito, ela teve o derrame enquanto ele estava internado numa clínica para idosos. Perdeu o seu amor com uma compreensão invejável. Aceitou a vontade da Vida. Depois de 63 anos juntos ele se foi. Não aconteceu de repente. Ele ficou preparando sua partida por cinco anos. Tão ligado a ela, não poderia ir assim rapidamente. Acho que ela foi-se acostumando a não tê-lo mais nos seus dias, pois que o guardava como um cão, sem muito espalhafato, mas acompanhando o dono com o olhar de um enorme carinho. Brigava com ele o dia todo, implicava pelas mínimas coisas ao invés de declarar logo seu amor, com palavras e gestos. Aprendeu, enfim, a duras penas, a demonstrar o seu afeto.
Por tudo isso, não me surpreendo de agora vê-la, quase todas as manhãs, de pé junto à bancada do armário da cozinha, de frente para a batedeira, sentindo o cheiro que vem dela dizendo palavras entre dentes, como se conversasse com alguém. E pasmem, até já a vi beijando a borda do eletrodoméstico! A primeira vez que presenciei a cena não entendi nada. Depois, observei o que fazia e lhe perguntei com quem falava. Ao que ela me respondeu: com o seu pai, ele vem aqui todos os dias. Sente só o cheiro na batedeira, disse-me ela. Agora ele está aqui. Quando não está, o cheiro some.
Ocorre que meu pai, antes de ser funcionário público, agente administrativo no Ministério do Trabalho, era padeiro. Foi gerente de padarias por muitos anos. Em toda a sua mocidade fazia pães deliciosos e no primeiro encontro com a minha mãe, onde trabalhava, ofereceu-lhe um lindo pão doce que naquele tempo vinha recheado (alguns exemplares, de surpresa para os fregueses afortunados) com aneizinhos. Nada mais coerente do que o que ela estava dizendo. Ele tinha cheiro de farinha, era o perfume daquelas mãos grandes e habilidosas, lindas que eu bem conhecia, e ela, muito melhor do que eu.
Passei a observar. Por várias vezes já senti o cheiro do meu pai naquela batedeira que hoje já não é quase utilizada, em ocasiões e datas importantes para a família. Às vezes, nem estou prestando atenção, conferindo se o perfume está ali e é o aroma que me atrai, me avisando que ele está presente naquele momento e acabo entendendo o porquê da sua visita. Confesso mesmo que, por várias vezes, conversei com o espírito do meu pai naquele lugar, em situações difíceis de nossas vidas, como se faz num santuário.
E para a minha mãe é simples assim: ele se foi, ela tem saudades, o amor permanece e liga os dois. Para ela, ele vem, ainda vive fora do corpo, ela sente o seu cheiro e o seu coração se alegra: ele está ali.
Minha mãe, a batedeira, meu pai, o amor unindo as pessoas, antes e depois da vida. A morte não existe mesmo, concluí.



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Um comentário:

Ana disse...

MUITO LINDO!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A-DO-REI!!!!!!!!!!!!!!!!
PARABÉNS, ALBA!!!!!!!!!!