Querido Brógui:
Hoje, dois anos após a morte do Tio Mário, comecei a desocupar de suas coisas o seu apartamento. Por que tanto tempo depois? Um misto de deixa-pra-depois com a sensação incômoda de estar mexendo naquilo que não me pertence. Decidi ir lá depois que sonhei com ele me dizendo que estava mesmo querendo falar comigo, que estava tudo bem e que ele já tinha falado com Deus.
Enquanto futucava seus objetos pessoais, fui conhecendo meu tio. É impressionante o quanto conseguimos saber acerca de uma pessoa por aquilo que esta reúne ao longo de sua existência terrena e, mais ainda, como os “aquilo” são organizados. Percebi que pouco sabia sobre ele e o quanto teria sido bom sabê-lo de outra forma que não essa. Temos tanto em comum como jamais imaginara.
Livros. Centenas de livros. Não sei se ele chegou a ler todos, acho que não, há algumas coleções de banca de jornal ainda dentro do plástico, mas ele os amava. Acho que comprava pelo prazer de tê-los, ainda que fossem repetidos, mesmo que não os lesse.
Há, no acervo, exemplares datados de antes do meu nascimento. Romances, livros de História, Filosofia, dezenas de dicionários, enciclopédias, livros sobre saúde, animais, Atlas, Direito (!). Foram dez caixas de livros. Duas de roupas. Dá o que pensar, não? Poucas roupas e muitos livros.
Descobri que meu tio aprendeu inglês com um dicionário e a coleção completa de Agatha Christie nessa língua. Também descobri que ele aprendeu a mexer em um computador antes de ele virar um eletrodoméstico, encontrei uma apostila da linguagem Cobol! Descobri que ele adorava matemática, palavras cruzadas, charadas, testes de inteligência, jogar na loteria.
Gostava de viajar. Nas suas gavetas desorganizadas, há poucas fotos e muitos cartões postais. Tem um monte de cartões postais do Vesúvio. Acho que ele se encantou com o vulcão. Tem roteiros de viagens, um monte folders de hotéis, até nota fiscal de um almoço em Foz do Iguaçu.
Li uma carta do Vovô Ricardo, datada de maio de 1945, enviada para a Itália em plena 2º Guerra. É, Tio Mário foi pracinha da FEB.
Achei um exemplar do livro que publiquei, cartões de inscrição de concursos públicos que ele fez (acabou passando), um Diário Oficial agradecendo pelos serviços prestados com eficiência ao Estado do Rio de Janeiro, um documento de nomeação para um cargo de chefia assinado por Carlos Lacerda (!), um diploma de honra ao mérito assinado por Chagas Freitas, meus convites de primeira comunhão, de quinze anos e de formatura. Todos (!) os contracheques dele estavam lá, naquela miscelânea de meias, revistas antigas, recortes de jornal, extratos de banco, cadeados sem chave e chaves sem porta…
O duro foi jogar coisas fora. Até que não foi muita coisa pro lixo não, apenas pilhas de revistas e jornais velhos, uns cacarecos tipo caneta que não escrevia, antena de televisão quebrada, mas mesmo assim me senti invadindo a privacidade dele, selecionando o que era ou não “viável”. Foi como se eu estivesse decidindo o que era ou não importante na sua vida. Em determinado momento pensei: daqui a quarenta anos meu sobrinho estará fazendo a mesma coisa, com a diferença de que achará tanto livros quanto roupas e sapatos. Vai dar mais trabalho.
Então é isso? É isso o que resta de uma vida? É assim que contamos nossa história? Coisinhas que guardamos nas gavetas e nas estantes? Acho que sim. Acho que não. Ainda restam as memórias que deixamos na cabeça dos outros, lembranças que não nos pertencem e por isso delas não dispomos (nem nossos herdeiros), registros que enfim também se apagarão quando os seus receptáculos se forem. Ou não. Eu tenho o Querido Brógui. Não vou morrer nunca.
Hoje, dois anos após a morte do Tio Mário, comecei a desocupar de suas coisas o seu apartamento. Por que tanto tempo depois? Um misto de deixa-pra-depois com a sensação incômoda de estar mexendo naquilo que não me pertence. Decidi ir lá depois que sonhei com ele me dizendo que estava mesmo querendo falar comigo, que estava tudo bem e que ele já tinha falado com Deus.
Enquanto futucava seus objetos pessoais, fui conhecendo meu tio. É impressionante o quanto conseguimos saber acerca de uma pessoa por aquilo que esta reúne ao longo de sua existência terrena e, mais ainda, como os “aquilo” são organizados. Percebi que pouco sabia sobre ele e o quanto teria sido bom sabê-lo de outra forma que não essa. Temos tanto em comum como jamais imaginara.
Livros. Centenas de livros. Não sei se ele chegou a ler todos, acho que não, há algumas coleções de banca de jornal ainda dentro do plástico, mas ele os amava. Acho que comprava pelo prazer de tê-los, ainda que fossem repetidos, mesmo que não os lesse.
Há, no acervo, exemplares datados de antes do meu nascimento. Romances, livros de História, Filosofia, dezenas de dicionários, enciclopédias, livros sobre saúde, animais, Atlas, Direito (!). Foram dez caixas de livros. Duas de roupas. Dá o que pensar, não? Poucas roupas e muitos livros.
Descobri que meu tio aprendeu inglês com um dicionário e a coleção completa de Agatha Christie nessa língua. Também descobri que ele aprendeu a mexer em um computador antes de ele virar um eletrodoméstico, encontrei uma apostila da linguagem Cobol! Descobri que ele adorava matemática, palavras cruzadas, charadas, testes de inteligência, jogar na loteria.
Gostava de viajar. Nas suas gavetas desorganizadas, há poucas fotos e muitos cartões postais. Tem um monte de cartões postais do Vesúvio. Acho que ele se encantou com o vulcão. Tem roteiros de viagens, um monte folders de hotéis, até nota fiscal de um almoço em Foz do Iguaçu.
Li uma carta do Vovô Ricardo, datada de maio de 1945, enviada para a Itália em plena 2º Guerra. É, Tio Mário foi pracinha da FEB.
Achei um exemplar do livro que publiquei, cartões de inscrição de concursos públicos que ele fez (acabou passando), um Diário Oficial agradecendo pelos serviços prestados com eficiência ao Estado do Rio de Janeiro, um documento de nomeação para um cargo de chefia assinado por Carlos Lacerda (!), um diploma de honra ao mérito assinado por Chagas Freitas, meus convites de primeira comunhão, de quinze anos e de formatura. Todos (!) os contracheques dele estavam lá, naquela miscelânea de meias, revistas antigas, recortes de jornal, extratos de banco, cadeados sem chave e chaves sem porta…
O duro foi jogar coisas fora. Até que não foi muita coisa pro lixo não, apenas pilhas de revistas e jornais velhos, uns cacarecos tipo caneta que não escrevia, antena de televisão quebrada, mas mesmo assim me senti invadindo a privacidade dele, selecionando o que era ou não “viável”. Foi como se eu estivesse decidindo o que era ou não importante na sua vida. Em determinado momento pensei: daqui a quarenta anos meu sobrinho estará fazendo a mesma coisa, com a diferença de que achará tanto livros quanto roupas e sapatos. Vai dar mais trabalho.
Então é isso? É isso o que resta de uma vida? É assim que contamos nossa história? Coisinhas que guardamos nas gavetas e nas estantes? Acho que sim. Acho que não. Ainda restam as memórias que deixamos na cabeça dos outros, lembranças que não nos pertencem e por isso delas não dispomos (nem nossos herdeiros), registros que enfim também se apagarão quando os seus receptáculos se forem. Ou não. Eu tenho o Querido Brógui. Não vou morrer nunca.
Postado, originalmente, em 21/07/2008.
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Um comentário:
Fatinha:
É verdade: você não vai morrer nunca, pois sempre haverá alguém revivendo você no Querido Brógui, mesmo daqui a milênios!!!
E tudo isso de bom que você é está para sempre imortalizado.
Você merece!
Beijo!
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