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domingo, 14 de junho de 2009

Cobras e Contas de Folhas de Bananeira - por Bruno D’Almeida

Na escola, Dentinho era apenas a criança desobediente, “que não queria nada com a hora do Brasil”. Era motivo de risos e de babas meladas na carteira. Tinha uma rotina que começava bem antes de chegar cedo na escola. Ninguém imaginava a aventura absurda a que aquela criança se lançava todos os dias com a família em busca da própria sobrevivência. Vinha direto do trabalho, sentava na cadeira da sala de aula e dormia solenemente.

Todos os dias era a mesma coisa. Adentrar a mata fechada, arranhar as canelas finas, ouvir a sinfonia dos sapos, o canto da coruja, o arrastar de cobras farfalhando folhas secas pelo chão. Levantava às 3h30 da manhã com o cheiro de café que d. Zica fazia na cozinha. Acordava no chuveiro frio e depois comia mecanicamente um pedaço de cuscuz com margarina. Seu pai já estava amolando os facões e separando os sacos de alinhagem.

Todos prontos, saíam às 4h da manhã e desciam pela encosta do fim de linha do bairro do Iapi em direção ao 19º Batalhão do Exército. Pulavam o muro e entravam num pedacinho remanescente de Mata Atlântica para colher folhas de bananeira, que servia para embalar o abará, um bolinho de feijão vendido pelas baianas de acarajé. Não podiam demorar mais do que meia hora para que não fossem encontrados e presos. Cada um saía de lá com dois sacos cheios.

Chegavam em casa antes de amanhecer completamente o dia. D. Zica cortava as folhas de bananeira em quadradinhos e seu Zé passava um por um na brasa acesa do fogão de lenha para que a folha ficasse amolecida e pudesse empacotar os abarás. Dentinho, já com a roupa da escola, contava as folhas e fechava os pacotes com cem peças cada. Beijava sua mãe, comia uma pamonha de carimã e ia embora vender as folhas para outras baianas da região com seu pai.

D. Zica ficava em casa para moer o feijão fradinho do tipo olho de pomba, que ficou boiando na água dentro de uma bacia de alumínio grande até que as cascas se soltassem. Lavou na água corrente até ficar bem limpinho, passou pelo moinho motorizado, misturou com cebola triturada, pedacinhos de gengibre, azeite de dendê, pedaços de camarão seco e pimenta. Bateu a massa até ficar homogênea, colocou sobre a folha de bananeira, embalou com desenvoltura como se fizesse dois cones invertidos e foi colocando um por um no caldeirão de fundo falso, onde o vapor da água cozinhava cento e cinquenta abarás para serem vendidos à noite.

Dentinho ia com seu pai batendo na casa das outras baianas de acarajé da região, pelos bairros do Pero Vaz, Largo do Tamarineiro, Caixa D’água, Cidade Nova e Pau Miúdo. Sobrou quase metade naquele dia e tiveram que pegar um ônibus e vender o restante na Feira de São Joaquim. O preço do cento da folha dependia da procura. Por sorte o material estava em falta no momento e conseguiram vender por um preço bom. Seu pai ia explicando pra Dentinho que, se ele aprendesse tudo direitinho, já teria um ofício quando ficasse adulto. Ganhou uma moeda de cinquenta centavos e foi contente para a escola, onde no intervalo poderia comprar uma banana real.

Pronto. Era por isso que, naquele momento, Dentinho estava dormindo na escola. Por isso ele chegou atrasado, com a roupa suja e todo suado. Sua professora estava preocupada, porque de vez em quando ele acordava nas aulas de matemática, resolvia contas com desenvoltura e voltava a dormir. Ficava fazendo contas sozinho nas raras vezes em que acordava, mesmo no horário das outras matérias. A professora escreveu na caderneta: esquizofrênico? Dentro de si, tão distante da escola quanto a escola estava dele, Dentinho lutava contra cobras, serpentes, lagartos gigantes para conseguir pegar folhas de bananeira, naquele sonho de fantasia e de singela verdade.



Um comentário:

Ana disse...

Bruno:
Linda esta crônica. Muito bonita mesmo. Muito real e emocionante.
Parabéns!