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(Aviso: Os textos em amarelo pertencem à categoria
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sábado, 22 de agosto de 2009

Bruna Lombardi, “Flautas e Lagartixas” - Citada por Penélope Charmosa

Cansa-me um pouco, Margarida, certa eletrônica de
teus dentes que consegue fazer da alegria uma coisa
fixa como um retrato 3x4. Teu romantismo dos que
ouvem rádio no final da tarde, esse costume de
cruzar as mãos sobre o peito enquanto falas e esse
olhar perdido longínquo que me atravessa.
Mas é há muito que eu esqueci de te culpar por isso.
Desde de que ficaste louca e eu te perdoei em silêncio
esse teu egoísmo de enlouquecer sozinha e me
deixar tão irremediavelmente lúcido no meio desse
país sem ressalvas.
Não foi justo usar a insanidade para poder nas tardes
de julho ficar nas árvores até as nove horas, quando
chegavam as primeiras falenas e te encontravam
deitada sobre uma larga folha verde, sentindo as
vibrações do ar como se sentem flautas.
Teu laço secreto com os animais e as coisas. Tua
estranha cumplicidade contigo mesma dentro de um
mundo primitivo governado apenas pela magia.
Caminhas com unicórnios, com os cervos, os lagartos,
comendo capim e uvas, algumas raízes, algumas
ervas, mordendo a terra, chupando frutas ácidas.
Não é justo te ver assim desprendida e descuidada,
numa mutação caleidoscópica, vivendo cada coisa
além de todo limite, amamentando raposas nos teus
seios, enquanto te cresce dentro essa planta, espécie
de trepadeira sexuada.
Te ver sentada nas estações, relaxada indolente a
bordar redes com musgos antigos, ouvindo apitos de
trens que não existem.
Agora alguma coisa despertou em ti teu parentesco
com o fogo.
Debaixo das chuvas a procurar mandrágoras, um
brilho estranho te flameja e dança dentro,
acompanhando o movimento dos corpos astrais, na
hora em que as corujas se aproximam.
Incandescências.
Em meio à noite descobrindo formações de corais
nas minhas costas, falando de outras cores, marilize,
andranólio, que me faz pensar que todo absurdo é
a nossa ignorância.
Tantos segredos em teu reino. Medusa pólipos
cogumelos te obedecem. Tens o dom da
transformação, rápida e sutil, quase satânica, o
poder de renovar constantemente as coisas,
enquanto eu tenho a consciência de estar preso
dentro das cercas da terra, onde tu apertas teu corpo
com força para ouvir um coração que eu
desconheço, porque no amplexo, dizes, se ouvem
coisas.
E eu compreendi que tinha te perdido numa
sabedoria inalcançável enquanto eu ainda acreditava
nos meus cinco sentidos.
Tuas histórias confusas metafísicas, um grande
corpo jogado no espaço, uma terrível doença
contagiosa, com vermes que se reproduzem com
tanta rapidez que não há mais possibilidade de cura.
E eu sabia então que já não eras minha e que fazias
amor com as árvores. Mas eu já perdoara teu
egoísmo de tornar-te infinita sozinha a visitar
planetas e deixar-me no meio do movimento dos
vermes e micróbios, nessa doença toda, sendo eu
também um irrecuperável micróbio como todos,
com a cara cheia das rugas da esperança, a cabeça
cheia de barreiras, o corpo cheio de limites.
Gritando contra alguma coisa dentro dela. Não foi
justo arrastar o sonho contigo o tempo todo e
enganar dessa maneira a vida e deixar-me nessa
medonha sanidade, nesse irritante equilíbrio de
encarar esse real de todo dia com ilusão nenhuma,
de enfrentar a cara do chefe de seção, do vizinho da
esquerda, de aceitar a porta e as paredes, as calças
e os botões e o perigo de caminhar nas ruas cheias de
unhas e carros e dentes, me arriscando a passar por
bom, temendo não ter feito o mal suficiente; de me
sujeitar entre os que protestam, de estar sempre
medindo as coisas, sabendo os acontecimentos,
prevendo os resultados, as consequências, tantos
desejos inúteis, desperdícios; surpreendendo-me
com o horror da minha própria risada, a angústia da
minha individualidade, minha solidão, o medo, o
vazio, minhas conclusões de lógica, armazenando
esse amontoado cruel de experiências enquanto tu
conversas com os sapos e conheces as estrelas.
Desde há muito te perdoei por isso, Margarida,
como perdoaria ao Outro se acaso fosse ele quem
desenhasse o nosso destino, por ter-te colorido tão
mais sábia para encontrar a tempo o caminho da
inconsciência e dessa liberdade que eu, tão preso à
calçada, às formas e silogismos, por vezes não
compreendo e julgo caótica e desordenada, que eu,
condenado para sempre a esta absurda racionalidade,
não te guardo rancor e te perdoo, Margarida, por
esse teu egoísmo de enlouquecer sozinha.



In “No Ritmo Dessa Festa”....................................................
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Um comentário:

Ana disse...

ABSOLUTAMENTE DE-MAIS!!!
Grande Bruna!